terça-feira, 30 de novembro de 2010

Abandonado


Quando você me deixou, naquele dia que você partiu sem dizer pra onde ia, quando voltava, se é que voltava, naquele dia eu tentei compor um samba. Um dos antigos.

Samba velho é bom pra essas coisas do amor mal acabado.

Tentei incorporar o Paulinho da Viola. Mas o desgraçado ainda tá vivo e, até onde eu sei, só se incorpora gente morta. E também é preciso ser médium para incorporar quem quer que seja. Pelo menos acreditar em vida após a morte, mas nem pra isso minha fé serve.

Não fiz o nosso samba. Até por que para fazê-lo, seria conveniente que eu soubesse tocar algum instrumento, e eu não sei.

Mas, também, foda-se, odeio samba. Ideia de merda, essa minha.

Compor um samba... Só pra minha cara mesmo...

Quando você me deixou, abri um livro velho de poesia para me distrair, um do Quintana. Tinha um poema que dizia que para atrair as borboletas bastava que se cuidasse do jardim, ou algo parecido.

Não sei muito bem o que o acaso quis me dizer com isso. Eu cuidei de você, você que nunca cuidou de mim.

Mas, mesmo assim, eu cuidei do nosso jardim.

Você não sabe, mas depois que você partiu, tivemos um jardim.

Aquele pedacinho de terra que tinha no fundo do quintal da nossa casinha alugada, aquele onde havia amontoado uma porrada de pneus velhos de outros moradores, um verdadeiro berçário da dengue, ali naquele tantinho de chão eu fiz um jardim. Bem bonitinho, até.

Plantei várias cores de Amor-Perfeito.

Irônico, não?

Não vieram as borboletas. Acho que não tem disso por aqui.

Mas surgiram vários passarinhos que me acordavam às seis da manhã.

Não podiam começar a cantar as dez, os filhos das putinhas?

Pensei em comprar uma espingarda de chumbinho para me vingar do meu sono interrompido por aqueles desgraçados daqueles filhos das putinhas. Mas não sei onde se compra uma dessas.

Concretei toda a porra do jardim e cortei a goiabeira que tinha no quintal. Só dava goiaba bichada mesmo. E da branca, eu gosto é da vermelha. Concretei ali também.

Em pouco tempo os filhos das putinhas desapareceram.

Acho que você teria gostado do nosso ex-jardim.

É provável que com o seu temperamento imprevisível, em algum momento você destruísse toda a porra do jardim. Mas, de início, acho que você teria gostado do nosso ex-jardim.

Você já me deixou outras vezes, mas nunca passou tanto tempo fora.

Tenho vontade de sumir também, quando imagino que posso nunca mais te ver.

Por que você faz isso comigo?

Eu fui bom pra você, sei que você sabe disso. Talvez, os meses que passamos juntos tenham sido os únicos em que eu tenha sido realmente uma pessoa boa, preocupado com algo além de mim.

Mas você me deixou, e já começo a duvidar que vá voltar.

É triste admitir, mas no fundo sei que você só ficou comigo por interesse. Você sabia que comigo, teria tudo do bom e do melhor. Ainda que faltasse algo para mim, jamais permitiria que faltasse algo a você.

Mas, mesmo assim, você me deixou.

Os meus amigos, que te conheceram e nunca te acharam grande coisa, não entendem essa minha tristeza. Riem de mim, quando digo que sofro pela tua ausência, pelo teu abandono.

Vou deixar essa carta lá naquele cantinho da casa que você adorava, numa esperança burra de que você volte e a encontre e, mais do que isso, a leia, entenda o que eu quero dizer, e com a mesma determinação que te esperei, você busque me encontrar.

Mas tenho que me mudar, o dono da casa pediu ela de volta. Vou ter que pagar uma indenização fodida por ter cortado a goiabeira e concretado o berçário da dengue.

Eu não devia te aceitar de volta, mas, caso você volte, não saberei te dizer não.

Não sei ainda onde vou morar, mas prometo que se você voltar, faço de novo um jardim para te entreter. Acho que você se divertiria com os passarinhos filhos das putinhas. Prometo tolerá-los, caso você volte para mim.

Fomos muito felizes nessa casa, mas te garanto que poderemos ser ainda mais em qualquer outro lugar, desde que estejamos juntos.

Chega a ser ridículo esse meu sofrimento, mas não consigo controlá-lo.

Eu, justo eu, que jamais me permiti sofrer por ninguém, agora estou aqui, desconsolado por você.

Pensei em espalhar aquela foto nossa, nós dois deitados no sofá, pelo bairro todo, mas desisti por saber que você deve estar por aí, se divertindo com um outro qualquer enquanto eu fico criando minhas lamúrias como se fossem bebês cujas mamadeiras abasteço com meu velho whisky vagabundo.

Se duvidar, você até já tem filhos. Mas eu te aceitaria de volta mesmo assim.

Criaria os teus filhos como se fossem meus também. Seríamos uma família.

Agora eu tenho que ir. Vou curtir a minha fossa em outro lugar.

Se você quiser voltar, vou estar te esperando de braços abertos.

Não devia, você não merece. Mas vou estar te esperando de braços abertos.

Que merda...

Eu que nunca sofri por mulher nenhuma, agora estou aqui chorando por ter sido abandonado por uma cadela vira-latas.

Que merda...

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Reeditando a reedição: Plim-plim

Caríssimos leitores, em função de algumas situações de ordem pessoal, não estou possibilitado de escrever algo inédito neste momento.

Logo, reeditarei um texto das épocas em que escrevia para o site Tô Puto, e que já publiquei aqui nos primeiros meses de vida deste blogue.

Deverei fazer mais umas três reedições, não consecutivas, mas em momentos específicos.

Como hoje em dia tenho o privilégio de contar com mais leitores do que os que tinha no início do blogue, sei que este texto será inédito para boa parte desta sofisticada audiência.

Atenciosamente.

A direção.


Ele x Ela (PLIM, PLIM)

William – Boa noite.

Fátima – Boa noite.

William – Três crianças, aparentemente da mesma idade, portando skates e patins interceptaram agora pouco, no hall de entrada de um luxuoso edifício localizado na zona mais nobre da cidade, um jornalista recém chegado do trabalho. O jornalista, visivelmente cansado, demonstrou certa impaciência com o ocorrido e uma ligeira irritação com a ausência da mãe das crianças, o que certamente impediria o choque ocorrido.

Fátima – A mulher, que além de mãe das três crianças trabalha mais de 14 horas por dia em uma grande emissora de televisão, revoltou-se com a impaciência do jornalista, alegando que, ainda que no trabalho ele seja o editor chefe e principal âncora do tele-jornal, em casa quem manda é ela e, se ele não está satisfeito, que vá dormir no sofá ou na casa da sua mamãe.

William – Graças ao bom-senso e paciência do jornalista, a discussão encerrou-se sem que ocorressem maiores conflitos, dirigindo-se rapidamente para sua suíte onde dedicaria os próximos 30 minutos a um demorado banho, enquanto sua mulher prepara um delicioso jantar.

...

William – Um forte tumulto ao redor da mesa de jantar, provocado por três crianças incansáveis cuja mãe corriqueiramente isenta-se da responsabilidade de impor-lhes limites, abala profundamente o estado emocional de um homem aparentemente na casa dos 45 anos, levando o pobre homem ao extremo de quase cometer um infanticídio.

Fátima – No entanto, a tragédia é evitada graças a intervenção da mãe que, ainda que esteja cansada do trabalho, tendo preparado o jantar para seu marido, sem ter tido tempo sequer para tomar um banho, intercepta as crianças aos berros colocando-as todas de castigo e, no mesmo tom alterado de voz, manda o marido de atitude semi-vegetativa à merda.

William – O marido bonitão não entende a revolta de sua esposa, já não bastasse a paciência dele em ingerir uma comida tão sem sal e fria, ainda teve que aturar gritos em quantidades de decibéis suficientes para acordar toda a vizinhança que, aquela hora, ou dormia ou assistia ao "Globo Repórter".

Fátima – A quantidade cada vez maior de fios de cabelos brancos na vasta cabeleira do jornalista, indicam claramente o avançado da idade do marido da corajosa mulher. Numa atitude altruísta e caridosa, a nobre mulher evitou colocar sal na comida do repórter, impedindo que sua pressão arterial se alterasse, afinal de contas na idade do velho homem, qualquer descuido pode tornar-se uma fatalidade.

...

William – Dados dos principais institutos de pesquisa do país, apontam para a coragem e, principalmente, persistência dos brasileiros diante das dificuldades. A investida de um jovem senhor charmoso e grisalho, para conseguir de sua mulher algum carinho no leito matrimonial é uma prova disto. Mesmo diante de tantas negativas e uma pétrea resistência, ele não desiste de tornar o final da cansativa noite, ao menos um pouco mais prazeroso.

Fátima – Pesquisadores americanos confirmaram esta semana que maridos presentes em casa, que auxiliam nos afazeres domésticos, têm um grande diferencial dos demais homens. As mulheres sentem-se profundamente estimuladas ao sexo sempre que amparadas no lar. Dados das pesquisas confirmam ainda que, os maridos companheiros costumam ter muito mais facilidade para conseguir de suas esposas, orifícios que a maior parte das mulheres insiste em negar aos seus parceiros. A pesquisa aponta ainda que, do contrário, os maridos ausentes nas obrigações domésticas despertam uma substância no cérebro feminino que provoca uma avassaladora enxaqueca, incapacitando a mulher de comparecer a qualquer ato carnal que o marido por ventura almeje.

William – Tal dor de cabeça deverá ser profundamente estudada por médicos ingleses, uma vez que a recorrência dela pode indicar a possibilidade de um grave tumor no cérebro, pois normal, com certeza isso não é.

Fátima – Certa de seu bom estado físico, a mulher cederá ao marido ausente alguns minutos de misericordiosa assistência sexual, já que considera lastimável imaginar um homem naquela idade recorrendo aos prazeres manuais.

William – Consciente do seu charme e do interesse que sua voz sexy desperta nas mulheres, o jornalista aproxima-se da mulher para conceder a ela um pouco daquilo do que deve ser feito o paraíso.

Fátima – Mulher sonolenta é despertada por um profundo ataque de riso após declaração brega de um homem em crise de meia-idade.

William – Aplicação agressiva e vigorosa é certeza de ações mais lucrativas.

Fátima – Baixa liquidez gera grande desconforto em acionista minoritária.

William – Oscilações periódicas são garantia de uma breve compensação do desconforto.

Fátima – Países baixos registram ligeira melhora nos conflitos.

William – Iminente chegada de uma enxurrada torrencial indicam a proximidade do fim das negociações de paz na região.

Fátima – Minorias solicitam que não sejam interrompidas as investidas das forças de paz, alegando que se as tropas da coalisão conseguirem manter o ritmo e a intensidade iguais aos do mesmo período nos três minutos passados, certamente haverá uma grande comoção popular.

William – As forças de paz já não encontram mais forças para conter a represa que insiste em romper. Na atual conjuntura macroeconômica, três minutos equivaleriam a séculos.

Fátima – Minorias insistem na resistência. A permanência das investidas das tropas de paz são fundamentais para o desfecho positivo do conflito.

William – As forças de paaaaazzzzzzz... aaaaaahhhhhhhh...... ai-ai...

Fátima – Já?

William – Ahã.

Fátima – Fique agora com o jornal da globo. Boa noite.

William – Boa noite.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

EU TE AMO É O CARALHO! (ou: Cada um sabe o tamanho da própria dor)


EU TE AMO É O CARALHO! PEGUE JÁ AS SUAS COISAS E DÊ O FORA DAQUI!

Calma, amor, me desculpe, isso nunca mais vai acontecer, eu juro.

FODA-SE, NÃO ME INTERESSA, SOME DA MINHA FRENTE!

Amor, nós já passamos por tanta coisa, deixa isso pra lá, vai.

PÁRA DE ME CHAMAR DE AMOR, SUA INFELIZ! SOME DA MINHA FRENTE, SOME DA MINHA VIDA!

Me desculpe, eu juro que foi só dessa vez, isso nunca mais vai se repetir.

EU JÁ DESCULPEI TUDO QUE TINHA PARA DESCULPAR, AGORA VOCÊ FOI LONGE DEMAIS!

Deixa disso, não foi tão grave assim...

POR QUE NÃO FOI COM VOCÊ!

Depende, você também já fez isso comigo e eu não liguei. Fiquei um pouco incomodada, mas deixei pra lá.

É DIFERENTE, VOCÊ SABE QUE É MUITO DIFERENTE!

Ah, esquece isso, vamos fingir que nada aconteceu.

PRA VOCÊ É FÁCIL CHEGAR E DIZER “VAMOS FINGIR QUE NADA ACONTECEU”, MAS PARA MIM NÃO É NADA FÁCIL, NÃO É NADA
SIMPLES.

Eu não sabia que você ia ficar tão chateado, me desculpe.

TUDO QUE TINHA PARA DESCULPAR EU JÁ DESCULPEI. FICAMOS NOIVOS, VOCÊ DESISTIU DE TUDO NA SEMANA DO CASAMENTO. FIQUEI COM A MAIOR CARA DE IDIOTA LIGANDO PARA OS CONVIDADOS E DIZENDO QUE NÃO TERIA MAIS CASAMENTO. DOIS MESES DEPOIS VOCÊ VOLTA E DIZ QUE TÁ ARREPENDIDA, PEDE PERDÃO, PEDE PARA VOLTAR, O QUE EU FIZ? PERDOEI, VOLTAMOS.

Desculpe, eu sei que errei, estava insegura.

TE PERDOEI, VOCÊ VEIO MORAR COMIGO, FOI SÓ EU SAIR DE CASA E O QUE VOCÊ FEZ? PEGOU MINHA COLEÇÃO DE CAMISAS DO MEU TIME E DEU PARA A CAMPANHA DO AGASALHO!

Mas elas estavam tão velhas...

MAS ISSO ERA O QUE INTERESSAVA NELAS, ERAM RARAS! ERAM MINHAS! VOCÊ NÃO TINHA O DIREITO DE JOGÁ-LAS FORA, DOÁ-LAS PARA OS POBRES, SEJA LÁ O QUE FOR. ERAM MINHAS! MINHAS!

Eu sei, eu sei. Já te pedi desculpa por isso.

QUANDO FINALMENTE COMPREI MEU CARRO ZERO, GUARDEI NA GARAGEM ESPERANDO A APROVAÇÃO DO SEGURO, O QUE VOCÊ FEZ? PEGOU SEM MINHA AUTORIZAÇÃO E BATEU A PORRA DO CARRO NO MURO DE CASA. PERDA TOTAL! PERDA TOTAL! ATÉ HOJE ESTOU PAGANDO AS PORRAS DAS PRESTAÇÕES DE UM CARRO QUE NÃO TENHO MAIS!

Ah, amor, eu precisava treinar, tinha recém tirado a carteira.

QUE FOSSE TREINAR NO CARRO DO VELHO CHATO DO TEU PAI, NÃO NO MEU CARRO ZERO!

Já, já você compra outro, só faltam 23 prestações.

TE PERDOEI POR MAIS ESSA MERDA. AÍ UM BELO DIA SAIO PARA VIAJAR, VOLTO MAIS CEDO, CHEGO EM CASA E O QUE EU VEJO? VOCÊ AJOELHADA NA FRENTE DO MEU IRMÃO! PORRA, O MEU IRMÃO!

Eu tinha bebido demais, desculpe, eu não queria que aquilo tivesse acontecido, foi um momento de bobeira, nunca mais vai acontecer, eu te amo, você sabe...

ATÉ ISSO EU PERDOEI, ATÉ A TRAIÇÃO COM O MEU PRÓPRIO IRMÃO EU PERDOEI! MAS AGORA NÃO DÁ MAIS, AGORA VOCÊ PASSOU DE TODOS OS LIMITES!

Amor, isso é uma bobeira, ninguém nunca vai saber, deixa pra lá.

DEIXA PRA LÁ É O CARALHO, ISSO NÃO TEM PERDÃO! ME ABANDONAR NA VÉSPERA DO CASAMENTO, JOGAR MINHAS CAMISAS DE FUTEBOL FORA, BATER MEU CARRO ZERO, ME TRAIR COM MEU IRMÃO, ISSO TUDO EU PERDOEI, MAS AGORA NÃO DÁ MAIS. AGORA VOCÊ FOI LONGE DEMAIS.

Mas amor, eu te amo...

EU TE AMO É O CARALHO, ISSO NÃO TEM PERDÃO! FIO TERRA NÃO TEM PERDÃO!

Mas...

NEM MAIS, NEM MENOS. FIO TERRA NÃO TEM PERDÃO. JÁ PRA FORA DA MINHA CASA!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Agora falando sério: 20 de novembro, Dia da Consciência Negra


Leitores amigos, peço uma licencinha para mudar um pouco a rota do blogue. Só por hoje, prometo.

Diferente da maior parte dos blogues que acompanho, não faço deste espaço um diário onde emito minhas opiniões sobre as coisas. Escolhi fazer dele o meu livro virtual, aonde vou publicando, semana após semana, dois ou três novos contos a cada período.

Mas resolvi mudar um pouquinho, em função de um assunto que muito me interessa e faz pensar.

Dia 20 de novembro, dia da consciência negra.

Algumas cidades decretaram feriado nesta data, outras não. Florianópolis, minha terra natal, decretou feriado e agora voltou atrás.

Já ouvi várias coisas a respeito da data, pessoas apoiando a celebração, outras veementemente contrárias, enfatizando que trata-se de mais uma atitude separatista, uma vez que não existe o “dia da consciência branca.”. Ouvi comparações com a polêmica das cotas nas universidades para pessoas de pele negra. Enfim, muito pano pra manga.

Resolvi, então, relatar minhas reflexões acerca do tema.

Sou contra o feriado, a favor da celebração.

Sou contra o feriado por questões profissionais. Não sou contra ESTE feriado, sou contra TODOS os feriados.

Enquanto não me torno o mais novo fenômeno da literatura mundial, é o trabalho de coordenador de uma equipe de vendas, um ótimo trabalho, que garante o pagamento em dia do meu aluguel, condomínio, da prestação da minha moto e da ração dos meus gatos. Feriados quebram as minhas pernas, derrubam meu faturamento, logo, sou contra os feriados, incluindo este novo pretenso feriado de 20 de novembro.

Contudo, entretanto, porém e todavia, sou totalmente a favor da celebração do dia 20 de novembro.

Antes de qualquer coisa, você sabe o que ocorreu no dia 20 de novembro?
Eu dou uma forcinha, é o dia da morte de Zumbi dos Palmares.

Quem foi ele?

Foi o quarto zagueiro do Figueirense no ano de 1990, um time fantástico que contava também com Peçanha, Tita, Aguirregarai, Kremer, Toninho Cajuru e Edson Borges.

Mentirinha, não foi nada disso. Mas aquele time era mesmo fantástico!

Zumbi dos Palmares foi um dos primeiros brasileiros a se movimentar politicamente buscando o fim da escravidão no Brasil.

Lutou por isso.

Morreu por isso.

Há, na divulgação da data comemorativa, um erro de propaganda. As pessoas que querem celebrá-la, não souberam vendê-la aos demais brasileiros. Muita gente fica com o pé atrás, achando que é mais uma coisa exclusiva dos negros.

Mas eu percebo de maneira diferente. Primeiro, consciência não tem cor. A tal consciência negra, é a consciência que todos nós devemos ter, de que a cor da pele não confere a ninguém o direito de subjugar o próximo.

O dia 20 de novembro, dia da consciência negra, não é um dia de celebração dos negros, é um dia de celebração dos brasileiros.

Deveria ser lembrado com a mesma importância com que se lembra a assinatura da lei Áurea. Tudo bem, já não se lembra tanto assim da lei Áurea, mas foram acontecimentos importantes para que nos tornássemos uma nação mais justa, menos desigual.

Ainda não chegamos lá, mas se hoje estamos ano após ano melhorando na diminuição destas desigualdades, isso começou com a luta de alguns poucos corajosos, como o Zumbi dos Palmares, por exemplo.

Não é um dia dos negros, é um dia dos brasileiros.

O dia para celebrar a nossa igualdade em importância, independente da cor da nossa pele.

Não é o dia da consciência negra.

É o dia da consciência brasileira.

Celebremos, então!

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Umazinha, rapidinha


Valeu pela carona, achei que depois de tudo você nunca mais ia querer olhar na minha cara.

Que é isso, já faz tanto tempo.

Eu sei, mas sei lá, achei que você ainda estava com ódio de mim.

Página virada, o que passou, passou. Além do mais, não poderia deixar você lá no ponto de ônibus parado, ainda mais com essa chuva toda. Te cuida, beijo.

Peraí, peraí.

Oi?

Você não quer subir, tomar um cafezinho?

Não misturemos as coisas, eu só ofereci uma carona, nada mais.

Eu sei, eu sei. É que o trânsito nesse horário já é um caos, com essa chuva então, está tudo parado. Suba, tome um cafezinho enquanto espera a chuva diminuir um pouco.

Melhor não, sabemos como isso tudo pode terminar.

Não, fique tranqüila. É como você mesma disse, página virada.

Sei não...

Que é isso, somos adultos, civilizados. Só um cafezinho, depois você volta para a sua vida e eu para a minha.

Começa no cafezinho, depois vem um vinhozinho, nós sabemos que tudo começa assim.

Um cafezinho, eu juro. Só um cafezinho.

Só um cafezinho mesmo?

Palavra, só um cafezinho. Claro, se você quiser um vinhozinho depois, eu recebi ontem mesmo uma caixa de um cabernet fantástico de uma amiga minha que está passando um tempo em Milão.

Não falei? Nem saí do carro e você já está me servindo um cabernet.

Cafezinho, só um cafezinho.

Tudo bem, mas é sério, hein?! Uma xícara de café, e vou embora.

Uma xícara, nada mais

O sofá sempre esteve ali?

Não, dei uma mudada nas coisas. Precisava mudar um pouco a cara desse apartamento, criar um clima novo aqui dentro. Duas colherinhas de açúcar?

Adoçante, três gotinhas, por favor.

O tempo fez bem para você.

Você parece mais tranqüilo.

Deve ser a idade, a gente acaba sempre dando uma sossegada.

Gostei da barba.

Mudar os móveis de lugar não foi mudança suficiente, mas como o tempo me trouxe um pouco mais de calma e em troca levou quase todo o meu cabelo, deixar a barba crescer foi a única maneira que encontrei de me renovar.

Ficou legal.

Obrigado. Mais café?

Só mais um pouquinho. Sua mãe está bem?

Sim, sim, está ótima. Estão todos bem. Ainda perguntam por você. Não acreditam que nos afastamos desse jeito.

É que eles não presenciaram as coisas que essas paredes assistiram.

Águas passadas.

Claro, águas passadas.

Quer comer alguma coisa, um queijinho, azeitonas, amendoim? Tenho pistache, sei que você gosta.

Nossa, ficou chique, hein?

Nada disso. Veio numa cesta de natal que eu ganhei lá na firma.

Não, obrigado, pistache não. É provolone?

Camembert.

Manda. É bom mesmo esse cabernet?

Sabia que você não ia resistir.

Só uma tacinha.

Duas. Uma pra mim, outra pra você.

Engraçadinho.

Um brinde?

Ao reencontro.

Aos velhos tempos.

Eles passaram.

Novos podem vir.

Não, nós sabemos como isso termina.

Nós sabemos como começa, como termina não temos como prever.

Claro que temos, nossos antecedentes nos condenam.

Mais vinho?

Só um pouquinho, metade, por favor.

Nós nos divertimos muito aqui.

Eu sei. Eu sempre me lembro das coisas boas.

Então, por que não nos darmos outra chance?

Por que eu também me lembro das coisas ruins.

Vamos focar somente nas boas.

Não dá certo, nós já tentamos muitas vezes, e sempre termina em agressão.

Podemos fazer diferente, vai exigir um pouco mais de esforço, mas estamos mais velhos, mais experientes, podemos fazer diferente desta vez.

Sabia que não devia ter subido.

Se lá no fundo você realmente não quisesse ter subido, não teria me oferecido carona. Vai dizer que não sente nada quando está aqui?

Claro que sinto. Por isso que não deveria ter subido.

Nunca rolou com outra pessoa a química que rolava com você.

Nós formávamos uma boa dupla.

Podemos ser de novo uma boa dupla. Podemos ser uma ótima dupla, é difícil tanta sintonia quanto a que a gente tinha.

Eu sei, também já tentei com outros parceiros, mas não é igual.

Então, vamos nos dar outra chance.

Melhor não. As coisas começam bem, depois vêm as brigas, as acusações, as ofensas. Não quero mais ser ofendida, não quero mais ofender.

Se não tentarmos, nunca saberemos se já superamos as brigas. Mais vinho?

Sim.

Vamos tentar?

Não. Melhor não.

Só mais uma vez. Vamos tentar sermos de novo aquela dupla de sintonia perfeita só mais uma vez.

Acho que não.

Então só mais umazinha.

O quê?

Umazinha, rapidinha, pelos velhos tempos.

Isso não vai acabar bem.

Claro que vai, você sabe que com outro nunca vai ser igual.

Pior que eu sei.

Então, pelos velhos tempos, só umazinha. Topa?

Rapidinha?

Se você quiser demorar, eu não me importo.

Mas é só umazinha, hein? Amanhã nada vai mudar, vamos fingir que nada disso aconteceu. Combinado?

Palavra, só umazinha e amanhã tudo volta a ser como era ontem.

Então tá bom, eu topo.


E assim, embora tivessem jurado um para o outro que jamais fariam aquilo novamente, mais uma vez viram o sol nascer jogando canastra a dinheiro.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Ah, o amor...


Léo e Décio eram amigos desde os tempos das calças curtas. Cresceram juntos numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul. Dividiram todas as aventuras de crianças, expedições intergalácticas no quintal de casa, roubavam goiabas nas árvores dos vizinhos, descobriram o sexo juntos. No sítio do avô de Décio, ambos dividiram o amor de Gertrudes, a vaca que fornecia o leite com o qual a avó fazia um queijo colonial delicioso.

Juntos, também desfrutaram pela primeira vez do corpo de uma mulher. Era uma edição de 1982 que trazia na capa a Monique Evans.

Foram coroinhas nas missas de domingo da capela da pequena cidade gaúcha.

Na adolescência, competiam para ver quem conquistava mais meninas, e ambos eram bons nisso. Muitas choraram por eles.

Passaram juntos no vestibular. Décio para arquitetura, Léo para Geografia. Os pais de ambos, também amigos, bancaram a vida estudantil em Porto Alegre.

Nessa época, as aventuras amorosas eram ainda mais intensas. Léo se saía um pouco melhor com as garotas, pelo seu jeito despojado de quem não quer nada com a vida, típico dos estudantes de Geografia, atraía o interesse de um número um tantinho maior de meninas. Mas Décio não ficava muito atrás. Mesmo com seu jeito meio desengonçado, colocando as mãos por dentro dos bolsos da calça para puxá-la constantemente cima, ainda assim exercia algum estranho fascínio nas meninas.

Nada atrapalhava aquela amizade.

Até que um dia, para surpresa de Décio, Léo apareceu com uma menina no apartamento deles, dizendo, Agora é sério, encontrei a mulher da minha vida.

Décio deu risada, logo Léo, o Don Juan do campus universitário, logo ele ia se amarrar assim, com mais da metade da faculdade pela frente? Mas ele se amarrou.

Comprou alianças de prata, perfume, e até passou a se barbear e andar penteado.

A surpresa de Décio só não foi maior do que a de Léo, quando seu melhor amigo anunciou que abandonaria a faculdade de Arquitetura.

Tá maluco? Perguntou Léo.

Pelo contrário, finalmente estou são. Vou ser padre.

Léo deu risada. Gargalhou.

Mas era verdade.

Da noite para o dia, Décio mudou radicalmente. Arrumou suas coisas, colocou-as todas numa mala velha, a mesma que trouxera suas roupas quando se mudaram para Porto Alegre e, num abraço não tão apertado quanto emocionado, despediu-se do amigo com os olhos marejados.

Léo ficou preocupado, achou que Décio não estava bem. Mas o amigo parecia tão sereno e estranhamente feliz, que acabou aceitando a decisão.

Décio se ordenou padre dois anos depois. A cerimônia foi linda, e Léo, apesar de declarar-se ateu, estava na primeira fila da igreja para congratular o amigo pela realização daquela que ele acreditava ser a sua verdadeira vocação. Léo e Amanda, sua namorada.

Horas mais tarde, na casa dos pais de Décio, Léo e Amanda se aproximaram do novo padre e, emocionados, comunicaram a ele que iriam se casar.

Décio abraçou-os com muito carinho e felicidade, afinal de contas, duas vocações se solidificavam naquele dia.

Mais do que o comunicado, Léo e Amanda pediram a Décio que ele celebrasse o casamento.

Eu?

Sim, claro, você!

Mas eu?

Claro, Décio, se eu vou me casar na igreja, logo eu, esse casamento só pode ser celebrado por aquele que conhece todos os meus defeitos melhor do que qualquer pessoa. Faço questão que seja você!

E eu também. Disse Amanda.

Outro abraço, mais emoção.

Os preparativos correram rápidos e, em poucos meses, a data chegara.

No dia do casamento, tensão para todos os lados. Aquele nervosismo choroso, pais orgulhosos, mães de coração partido, tudo conforme manda o figurino.

Na cerimônia, Décio fez um discurso inspirado. Não houve na igreja quem conseguisse conter as lágrimas ouvindo ele falar da amizade de ambos, e da sua felicidade em saber que estava entregando o seu melhor amigo nas mãos daquela que ele escolhera para dividir a tortuosa caminhada da vida a dois. Mais do que isso, se fora ela a escolhida de Léo, era também a escolhida dele, pois teriam nele todo o apoio que a qualquer momento viessem a necessitar. Léo era mais do que um amigo, e a mulher que passasse a fazer parte da família dele, seria também família de Décio.

No juramento, provavelmente o mais bonito já visto em uma igreja católica, Décio quase levou Amanda aos prantos, e entre soluços, ela só teve forças para dizer, Sim!

Repetiu o lindo juramento, agora para Léo, que enquanto ouvia as palavras do amigo segurava as mãos trêmulas de Amanda, olhando fundo nos olhos da sua futura esposa lavados por lágrimas que descompunham a maquiagem que levara tantas horas para ser pintada em seu rosto perfeito.

Léo ouviu cada palavra, Amanda ouviu cada palavra, todos, a igreja inteira ouviu cada delicada palavra cuidadosamente escolhida por Décio, para ao final delas, quando o jovem padre disse, Você aceita Amanda como sua legítima esposa, para amá-la e respeitá-la, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza até que a morte os separe; presenciarem Léo suspirar profundamente, passar uma das mãos na face de Amanda, tirar o lenço do bolso para tentar em vão conter as copiosas lágrimas de felicidade, e dizer, Não!

Naquele momento, por um segundo a igreja fora tomada por um silêncio de jazigo. Aos poucos, os burburinhos começavam a espocar nos bancos da capela, até que Décio, tão assustado quanto todos os presentes, perguntou instintivamente, COMO É QUE É?

Não! Repetiu Léo, Eu não quero ser teu marido, Amanda.

COMO É QUE É? Agora quem perguntou foi Amanda, já sem chorar, em estado de choque.

É isso mesmo, eu não quero casar contigo. Quando estava virado para a porta da igreja e vi você entrar vestida de branco, nesse vestido lindo, tive certeza de que era a coisa certa a fazer. Mas depois que nos viramos e vi o Décio, também de vestido branco, percebi que é ele que eu amo.

AQUILO É UMA BATINA, SEU FILHO DA PUTA! Disse Amanda, já sem muita delicadeza.

Batina também é vestido, retrucou Léo.

Todos, Léo, Amanda, os pais, amigos, a igreja inteira, todos se viraram para Décio, esperando que ele, na autoridade eclesiástica que ostentava naquele momento tão solene quanto tragicômico, dissesse alguma coisa que removesse da cabeça de Léo aquela inconseqüência descabida.

Décio estava assustado, olhou para todos com o mesmo pavor dos tempos de infância, quando ouviam histórias de assombrações ao redor da fogueira que o seu avô fazia no sítio.

Sentiu o mundo girar ao seu redor, ficou sem ar, achou que ia desmaiar. Mas não desmaiou.

Respirou fundo, olhou uma vez mais para a igreja atônita, dirigiu o seu olhar para Léo, o olhar sereno que só os homens de Deus possuem, abriu um sorriso largo e disse, Eu também te amo.

Léo caiu aos prantos de felicidade.

Décio colocou a mão sobre o seu ombro, e disse, Eu também te amo, mas sou apaixonado pela Amanda.

Nova consternação generalizada.

COMO É QUE É? Agora quem perguntou foi Léo.

Porra, Léo, disse Décio, naquela época, na faculdade, eu tinha te dito que estava gostando de uma menina, que achava que era diferente, de repente você me aparece com a Amanda. Era ela, cara! Era por ela que eu estava apaixonado! Quando vi vocês juntos, resolvi me tornar padre, foi um refúgio para o meu coração partido.

Então eram suas as cartas anônimas? Perguntou Amanda.

Claro, eram minhas!

Mas o Léo disse que eram dele!

Ah, você estava apaixonada pelo cara que te mandava as cartas, o idiota não se manifestou, eu só concluí o serviço.

Eu era o idiota.

Foi mal.

E nós? Perguntou Léo olhando para Décio.

E nós? Perguntou Décio olhando para Amanda.

Ainda dá tempo de largar essa batina?

Décio tirou a batina, atirou-a em cima do altar, pegou Amanda pelas mãos e saiu correndo pelo corredor da Igreja.

Léo ficou lá, parado, sem ação.

Aos poucos, os convidados foram saindo devagar, mais encabulados do que o próprio noivo apaixonado, confesso e largado. Quando se viu sozinho, na igreja praticamente vazia, Léo saiu caminhando devagar pelas ruas da pequena cidade gaúcha.

Naquela estranha noite de corações partidos, depois de beber em todos os bares que encontrou abertos pelo caminho, Léo ainda encontrou um pouco de refúgio na companhia da surpreendentemente longeva Gertrudes, que embora já estivesse mais pra lá do que pra cá, ainda dava no couro. Literalmente.

Décio terminou a faculdade de arquitetura, casou com Amanda e viveram felizes por muito tempo, mas não para sempre.

Quando se separaram, ela ficou com praticamente tudo que era dele, exceto uma pick-up Vitara, que ele fez questão de ficar para si, só por saber que ela adorava.

Léo pensou em virar padre, mas acabou passando o resto da vida sozinho.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A menina dos cachinhos e o dia em que o Diabo intercedeu por Deus


Um pouco antes de fechar os seus olhinhos, ouviu sua mãe dizer que não, morrer não era uma coisa ruim. Ela não sentiria mais dor, não precisaria mais tomar aqueles remédios todos, acabariam para sempre os enjoos, as cólicas, respirar deixaria de ser tão difícil e, o melhor de tudo, os seus cachinhos nasceriam de novo, ainda mais bonitos do que antes.

Disse também que ela não precisaria ficar preocupada, pois no céu, que é para onde ela iria, não ficaria sozinha. A vovó já estava esperando por ela, e com certeza já tinha preparado os bolinhos de chuva recheados com banana que ela tanto gostava.

Sim, o seu gatinho, atropelado há uns meses atrás, também estaria lá.

E foi imediatamente após fechar seus olhinhos, que ela percebeu que já estavam lá os cachinhos e, realmente, eles estavam ainda mais bonitos do que antes. Percebeu também que não sentia mais dor nenhuma, e eram tantas as que ela sentia que mal conseguia acreditar que estava assim, em pé, se quisesse podia até correr. Não tinha nenhuma agulha na sua mãozinha, ela não precisava mais do soro que a mãe dizia ser uma sopinha que se tomava pelo braço.

Desta vez, Deus quebrou o protocolo e foi ele mesmo recebê-la. Por via de regra, são os anjos que dão as boas-vindas, recebem os justos e os acompanham até o conforto da vida eterna. Mas desta vez não, o próprio Deus fez questão de receber aquela menina tão doce, a qual ele reconhecia com uma culpa secreta que jamais admitiria, que exagerara na dose de sofrimento pela qual a pequena passara.

O abraço de Deus era muito gostoso, ele parecia um avô sempre sorridente e muito divertido. Fez brincadeiras, barquinhos de papel, ensinou-a a fazer as nuvens tomarem forma de bichinhos. Deus era muito carinhoso, e isso a fez sentir-se muito bem.

Cadê a vovó? Perguntou a pequena.

Está te esperando, meu amor, respondeu Deus.

Com bolinhos de chuva?

Sim, com bolinhos de chuva deliciosos. Eu mesmo ajudei a prepará-los, você vai adorar!

Deus pediu que ela esperasse um minuto, só queria verificar se o gatinho também estava lá.

Pela falta de prática em recepcionar os novos habitantes do céu, Deus não se deu conta de que havia deixado a porta de entrada aberta, e por ela era possível enxergar aqueles que na terra ficaram. Os anjos, experientes neste expediente, bem sabiam que antes de permitir que as pessoas se percebessem no novo plano astral, primeiro fecha-se a porta. Deus descuidou-se.

E foi na fração de segundos em que Deus foi verificar a festa de boas vindas para a menina dos cachinhos, que ela virou-se para trás e viu o desespero da sua mãe, chorando ao lado do seu corpinho em cima da cama do hospital.

Ficou assustada com a cena, não entendeu por que ainda estava careca e por que a sua mãe chorava tanto, já que fora ela mesmo que lhe dissera que morrer era uma coisa boa.

Em seguida, viu o seu pai entrar no quarto e também chorar convulsivamente.

Mas eles não se abraçaram.

Ambos estavam dilacerados por aquela dor desumana, cruel, mas com uma frieza ainda mais cruel que não lhes permitia um abraço de consolo nem mesmo numa hora daquelas.

Quando Deus virou-se para ela, percebeu o descuido e tratou de fechar logo a porta.

Venha, minha querida, você não deve ver isto, Por que eles estão chorando? Não se preocupe, vai passar, Eu não quero que eles fiquem tristes, fui eu que deixei eles tristes daquele jeito, Não, minha querida, a culpa não é sua, É sim, se eu não tivesse vindo pra cá eles não iam estar chorando desse jeito, a culpa é minha, Não, minha pequena, a culpa não é sua, se alguém é culpado, sou eu, Você não gosta deles? Claro que gosto, mas isso não é assim tão simples, Eu não quero que eles fiquem tristes, Eles vão ficar bem, acredite em mim.

Quando Deus pegou novamente na sua mãozinha para levá-la até a avó, ela abaixou-se com a outra mão no estômago, dobrou os pequenos joelhinhos e para espanto de Deus, começou a vomitar.

Deus ficou assustado, não entendia o que estava acontecendo. Passou o seu lenço divino sobre a testa suada, foi lhe fazer um afago e percebeu que os cachinhos começaram a cair na sua mão. Em poucos segundos, apenas alguns poucos fios de cabelos cobriam a sua cabecinha, e já notava nos seus olhinhos as olheiras profundas e negras de minutos atrás, quando ainda habitava o mundo dos vivos.

Ela agora chorava de dor, sentia muita dor e Deus não tinha os remédios dos homens que amenizavam aquela dor.

Deus entrou em desespero, chamou a avó da menina. Ela veio, a menina tentou sorrir, mas a dor era muita.

A avó, que até então vivia na mais plena das felicidades no paraíso, começou a gritar com Deus, O que você fez com ela? O que você fez com a minha netinha?

Não sei, eu não sei o que está acontecendo, dizia Deus, já prestes a começar a chorar também.

Não fazia sentido, aquilo não era para estar acontecendo. Os anjos não entendiam o olhar assustado que Deus lhes direcionava, como quem pede ajuda. Como eles poderiam dar respostas Àquele que formulara todas as perguntas?

Em questão de segundos, o céu inteiro já estava ciente do desamparo de Deus e, quanto mais ele se angustiava com aquele inexplicável sucedido, mais a menina parecia adoecer. Mesmo que fosse impossível haver ar mais puro do que aquele que havia no céu, a cada instante a respiração da menina ficava mais difícil e visivelmente dolorida. Seu pequeno peito contraía-se numa asfixia muito mais sentida do que a terrena.

Foi então que o Diabo veio bater às portas do céu. O desespero de Deus era tanto, que ele sequer teve condições de repreender o anjo excluído pela sua ousadia.

O que você quer aqui, veio rir do meu infortúnio?

Vim Lhe ajudar.

O quê?

Eu posso fazer essa dor parar.

Você tem os remédios que os homens inventaram?

Não, isso pertence só a eles. Você lhes deu a inteligência, mas ao oferecer-lhes também o livre arbítrio, cedeu exclusivamente a eles as conseqüências que provém da inteligência. As fórmulas dos remédios, a dosagem, isso tudo só eles possuem. Nenhum de nós, nem mesmo o Senhor, tem poder sobre o que a inteligência, fruto do livre arbítrio, da escolha em fazer e dar utilidade para as coisas, produz.

Então você não tem nada o que fazer aqui, volte para as profundezas do seu lar que eu descobrirei um meio de salvar a minha menina.

Você não tem como fazer isso parar.

Por quê, se eu tudo posso?

O livre arbítrio, ele Lhe impede. Mas dê a alma dela para mim, que eu faço essa dor parar.

Não faz sentido, isso não faz o menor sentido, não há algo que você possa que eu não possa mais ainda!

Você sabe, ela não tinha por que adoecer. Não havia predisposição genética para o câncer. Ela escolheu adoecer.

Por quê? Por quê uma menina de seis anos escolheria tanta dor.

Por causa dos pais.

Como?

Os pais se separaram há doze meses atrás, depois de dois anos de agressões mútuas. Ela presenciava tudo, a dor dos dois que, por mais que se amassem, não conseguiam mais se suportar desde que o dinheiro acabara, conseqüência da falência da loja dele, provocada pela enxurrada que Você fez cair sobre a terra num novembro de três anos atrás.

O que uma coisa tem a ver com a outra?

No meio de uma das tantas brigas que houve nesse tempo todo, teve um dia que ela pegou uma gripe muito forte, Você deve estar lembrado. Nesta oportunidade, ela percebeu que os pais pararam de brigar para unirem forças pela convalescença dela. Tão logo ela melhorou, as brigas retornaram a rotina da família.

Isso não pode ser verdade.

Mas é. Foi pouco tempo depois que ela, por livre escolha, optou em adoecer de uma maneira tão intensa que fizesse com que seus pais parassem de brigar por mais tempo. E deu certo. Nesse tempo em que ela esteve doente, antes de morrer, os pais não brigaram mais. Apenas concentraram todas as suas forças na busca por uma cura para o câncer que a devorou em menos de um ano. A vontade dela em ver os pais em paz era tão grande, que não sobrou força dentro dela para fabricar a cura para a doença que ela mesma criou.

Mas isso já passou, foi na terra, não faz sentido ela continuar a sofrer aqui, nos meus braços, onde tudo é amor.

Mesmo aqui, ela ainda tem direito ao livre arbítrio. Disseram-me que Você esqueceu a porta aberta e ela presenciou os pais chorando, mas distantes um do outro. Agora ela adoeceu novamente, pois acredita que assim eles hão de se aproximar mais uma vez.

Eu não posso entregá-la a você.

Então terá que se acostumar em vê-la sofrendo por toda a eternidade e, acredite, essa dor só vai aumentar.

Não, isso não pode, eu não posso permitir que isso aconteça.

Você não tem como impedir, é uma escolha dela.

E como você pode mudar isso?

Na minha casa, quem manda sou eu. Minhas almas não têm escolha, elas fazem e sentem o que eu quero que elas sintam.

De que adianta ela parar de sentir estas dores, e passar o resto da eternidade ardendo nas labaredas do seu porão?

Você nunca esteve na minha casa. Quem disse que os meus vivem em labaredas, foram os Seus escritores, mas nenhum deles jamais esteve lá. Venha comigo, traga-a até a minha casa e veja com Seus próprios olhos como vivem aqueles que foram condenados ao meu porão.

Deus pegou-a nos braços e foi com o Diabo até o inferno.

Ficou estupefato com o que viu. Ninguém chorava, não havia ranger de dentes, não havia enxofre e, aqueles que lá viviam, eram felizes.

O que é isso? Perguntou Deus.

É o meu porão.

Por que todos estão felizes?

Por que eu quero, e não lhes dou outra opção.

Mas o livre arbítrio é uma benção!

Nem toda benção é necessária.

Por que você faz isso?

Pelo Seu perdão.

Não era mais fácil ter me pedido diretamente?

Você Se recusa a me receber.

Eu achei que você queria o meu lugar, queria ser o novo senhor de tudo.

Não, eu só quero as coisas como eram antes. Era muito bom viver ao Seu lado. Por isso, com o poder que me sobrou, fiz com que aqui se tornasse o mais parecido possível com a Sua casa.

E de que modo ela vai parar de sofrer se passar a viver com você?

Ela não vai ter escolha. Aqui ninguém sofre. Aqui, ninguém se lembra de quem era, com quem vivia, o que fazia. Aqui as almas simplesmente vivem felizes umas com as outras, não lhes dou outra opção.

Mas o que você me fez foi muito grave, não sei se lhe darei o meu perdão assim tão facilmente.

Nem por ela?

Sim, ela merece, mas você não.

Já estou acostumado com o Seu sacro-santo rancor. Interfira então no livre arbítrio dos pais da menina, e faça com que eles se entendam.

Eu não posso tirar uma graça que eu mesmo concedi. Não posso interferir em uma ou duas pessoas, e negar essa interferência aos demais.

Mas eu posso. Se Você me permitir interferir na terra, eu mesmo faço esse trabalho que Você considera sujo. Já estou acostumado com a má fama que me é atribuída.

E o que você vai ganhar com isso?

Nada. Também já estou acostumado a isso. Quando ganho alguma coisa, são as más almas. As mais cruéis, as vis, e cabe a mim o trabalho de modificá-las e fazer com que vivam na harmonia que eu, e não elas, escolhi para o meu porão.

Que assim seja feito.

Depois que desceu a terra e interferiu no livre arbítrio do casal, o Diabo mandou um bilhete para Deus, pedindo que Ele deixasse a menina espiar mais uma vez pela porta do paraíso.

Prontamente a menina começou a convalescer, assim que vira os pais abraçados carinhosamente no seu velório. Percebeu que o amor que sentiam se sobrepusera as desavenças, e agora um seria a força que faltava ao outro para superarem a perda da filha tão amada.

Depois disso, a menina pode enfim ser plenamente feliz por toda a sua eternidade ao lado dos que a amavam e já habitavam o paraíso a mais tempo, inclusive do seu gatinho.

Quando o Diabo voltou para o seu porão, um dos seus asseclas se aproximou querendo confortar-lhe pela dor que sabia que estava sentindo.

Não fique assim, meu amigo. Desista dessa ideia fixa de voltar a viver ao lado Dele. Ele é amor, mas não sabe perdoar. Há mais valor nos seus atos do que nos Dele. Você errou e se arrependeu, Ele deveria lhe perdoar, até para dar o exemplo.

Não fale assim, Ele é uma pessoa boa, só está magoado. Um dia a gente se entende. Não foi dessa vez, mas um dia a gente se entende. Ter consciência do meu erro não faz de mim menos culpado. Todo erro é justificável, mas isso não torna o erro necessariamente perdoável. O ofensor nunca sabe a dimensão do estrago que vai causar no peito do ofendido. O perdão não pertence a quem ofende, é um presente que só ofendido pode dar.

Quando escureceu no porão, o Diabo se recolheu sozinho, sentindo a maior saudade que nenhuma outra criatura jamais sentira.

Lembrou-se do dia em que foi expulso do paraíso por invejar a alma que os humanos receberam em detrimento dele e dos demais anjos.

Felizes dos humanos que têm a escolha, e podem até Lhe negar, pensou o Diabo. A mim, que não tenho como optar, só me resta continuar Te amando.

Naquela noite, o Diabo dormiu chorando baixinho.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O repelente


Zzzzzzzuuuuiiiimmm...

Zzzzzuuiimmm...

Puta que o pariu...

Zzzzzuuuuuuuuiiiiimmmm...

Mosquito chato do caralho...

Zzzzzzuuuuuuuuiiiiiiiimmmmmmmm...

Cacete, odeio o verão...

ZZZZZZZZUUUUUUUUUUUIIIIIIIIIMMMMMMMM...

Que merda...

Zzzzuuuuuuiiiimmmm...

Meu cara...

PORRA! LEVANTA, VAI LÁ NA SALA E PEGA A PORRA DO REPELENTE, MAS VÊ SE ME DEIXA DORMIR!

Como é que é?

Eu tô dormindo, caso você ainda não tenha percebido.

Precisa falar desse jeito?

Precisa me acordar por causa da porra de um mosquito?

Ei, eu não queria te acordar, só estava incomodado com o mosquito, só isso.

Ah, não queria me acordar, e fica se revirando a cada meio segundo, resmungando igual a uma velha.

Peralá, vamos com calma.

Vamos com calma é o cacete! Eu tenho que trabalhar amanhã cedo, se você vai tirar o seu dia de folga, parabéns pra você, eu tenho que trabalhar.

Eu pedi para você tirar o dia de folga também, para nós passarmos o dia juntos.

Eu sou responsável, meu caro. Se para você qualquer desculpinha é motivo para matar o serviço, comigo as coisas não funcionam desse jeito.

Qualquer desculpinha?

É isso mesmo, qualquer desculpinha!

Você tá na TPM?

O quê?

TPM, você tá na TPM?

TPM É O CARALHO! TPM É A PUTA QUE TE PARIU! TPM É A PORRA DO MOSQUITO QUE DEVIA TER TE DEVORADO VIVO, SEU BOSTA!

Ei, o que é isso, amadinha? Nós nunca brigamos, nunca levantamos a voz um para o outro, por que você está falando comigo desse jeito?

AMADINHA É O TEU CU!

Que é isso, amadinha?

PARA DE ME CHAMAR DE AMADINHA, SEU BOSTA!

Mas você sempre gostou que eu te chamasse de amadinha...

VOCÊ ALGUMA VEZ SE DEU O TRABALHO DE ME PERGUNTAR SE EU GOSTO DE SER CHAMADA ASSIM? EU ODEIO SER CHAMADA ASSIM, ODEIO! FICO COM VERGONHA QUANDO VOCÊ COMEÇA COM ESSA PALHAÇADINHA DE “AMADINHA”, “BIZUZINHA”, “NENÊZINHA” E O CARALHO! VÊ SE CRESCE, PORRA, ISSO AÍ É COISA PARA CASALZINHO DE NAMORADO, CACETE!

Eu achei que tínhamos um trato de sermos sempre namorados...

VÁ A MERDA! PORRA, AMADINHA? AMADINHA É O CARALHO!

Eu não estou te reconhecendo, isso tudo por causa de um mosquito? Nós nunca nos ofendemos, nunca levantamos a voz um para o outro, sempre concordamos que isso era inadmissível, falta de respeito. Sempre dissemos que se um dia um de nós levantasse a voz para o outro, se um ofendesse o outro, seria o nosso fim, seria o sinal claro que já tínhamos vivido tudo o que tínhamos para viver juntos.

Nossa, estou com o coração partido...

Essa não foi a mulher com quem eu casei.

Eu também não esperava ter casado com um bosta que fica me torrando a paciência, me acordando, só por causa da porra de um mosquito.

Um mosquito, tudo isso por causa de um mosquito...

Bom, então faça assim, levanta a porra dessa bunda que não gosta de mosquito, vá até a porra da sala, abra a porra da gaveta e pegue a porra do repelente. E vê se me deixa dormir, que amanhã eu tenho trabalho, porra!

Pode deixar, vou lá pegar “a porra” do repelente para você.

Eu não me importo com a porra do mosquito. Pegue para você, eu só quero dormir.

Levantou-se da cama, saiu do quarto, foi tateando no escuro, procurando a gaveta do armário da sala, quando ouviu um barulho de talher caindo. Acendeu a luz um tanto ressabiado...

PARABÉNS, PRA VOCÊ, NESSA DATA QUERIDA...

Amigos, pai, mãe, irmãos, sogra, sogro, cunhados, todo mundo ao redor da mesa da sala. Bolo, docinhos, salgadinhos, refrigerante, balões, tudo o que pede uma bela festa de aniversário.

Olhou para trás, a esposa veio sorrindo com um pacote enorme nos braços, o sorriso largo nos lábios de quem conseguiu surpreender aquele que sempre descobria suas surpresas antes de terem sido executadas.

Feliz aniversário, amadinho!

Amadinho?

Que é isso, bizuzinho? Era só uma brincadeira.

Brincadeira? Me chamar de “bosta”, era uma brincadeira?

Eu achei que poderia ser meio forte, mas a ideia foi da sua mãe, ela disse que se eu não fosse muito convincente, agressiva até, você descobriria a nossa surpresa.

Nós combinamos de nunca nos ofendermos, de nunca faltarmos o respeito um com o outro.

Mas era brincadeira, amadinho...

Com certas coisas não se brinca.

Meu nenêzinho, deixa disso. Eu até peguei folga amanhã para podermos passar o seu dia de aniversário bem juntinhos.

Com certas coisas não se brinca, casamento é coisa séria.

Ei, olha só, tá todo mundo aqui, eles são a prova de que era tudo uma brincadeira, eu jamais falaria com você daquele jeito, era só uma brincadeira.

Nem de brincadeira eu falaria com você daquele jeito.

Mas meu amor, era só para te fazer uma surpresa...

Olha, chega de conversa, tá bom?

O que você quer dizer com isso, amadinho?

Tá aqui o repelente, adeus.