domingo, 24 de outubro de 2010

A Aposta


Quando queriam referir-se à Luciene, os amigos diziam, Aquela, a cheinha. Mas Luciene não era cheinha, ela era gorda. Bem gorda. Muito gorda.

E não era dessas gordas que as pessoas dizem, Nossa, ela tem um rosto tão bonito, se perdesse uns quilinhos ficaria linda. Além de muito gorda, ela era também feia. Muito feia. De uma feiúra tão feia, que parecia até proposital, mal intencionada. Uma destas feiúras usadas para ameaçar crianças que recusam a salada. Além do mais, no caso dela, perder uns quilinhos não mudaria muita coisa.

Mas Adaílton, seu namorado, amava-a com desmesura.

Ele também era muito feio, e para fazer deles um casal realmente cômico, era muito magro, com constante aspecto de desnutrição aguda. E, embora usasse grossas lentes presas à uma armação de péssimo gosto para atenuar o profundo astigmatismo congênito, e mesmo se vestindo muito mal, não era o que chamam CDF, Nerd, ou algo que o valha. Adaílton era magro, feio, quase cego e tão inteligente quanto um saca-rolhas.

Contudo, como os vestibulares utilizam-se das questões optativas para selecionar os futuros acadêmicos que freqüentarão os bancos das faculdades, Adaílton, num dia de muita sorte, chutou todas as respostas na letra “B”, e passou. Muito bem classificado, inclusive. Quando questionado sobre o por que da escolha pela letra “B”, ele respondia, “B” de boiei, e ria seu riso estridente, desafinado e nervoso, escancarando seu sorriso de dentes pequenos e tortos, presos nas gengivas gigantescas.

Foi na faculdade que Luciene e Adaílton se conheceram. Ele apaixonou-se pela maneira discreta que ela chorou, sem deixar que ninguém notasse as suas lágrimas, quando um dos veteranos fez dela piada, dizendo que se tivesse entrado pelo sistema de cotas, sozinha, ocuparia umas quatro.

Achou tão delicada aquela mágoa contida da sua nova colega de classe, que a paixão projetou-se sobre ele como uma marretada no meio do peito, amassando-lhe o esquelético tórax.

No início, Luciene não dera atenção às sucessivas investidas de Adaílton. Embora já tivesse lá suas parcas experiências sexuais, não costumava dar crédito aos homens, pois, por saber-se feia, não julgava-se capaz de despertar interesse masculino, mesmo num feioso raquítico.

Mas um dia, numa das festas da turma, ela bebeu um pouco a mais, e acabou aceitando ir com ele a um dos quartos. Luciene estava tão bêbada, que sequer notara a halitose azeda de Adaílton. Beijou-o com sofreguidão, arremessou-o contra a cama, levantou o seu vestido e subiu em cima dele, cheia de voluptuoso apetite.

Mais tarde, quando saíam do hospital, ela não encontrava maneiras de se desculpar por ter lhe deslocado a bacia. Mas ele estava em êxtase, só por saber que sua amada estava ali ao seu lado, preocupada com o seu bem-estar. Foi então que começaram a namorar.

E o namoro transcorreu firme durante todo o curso, ele sendo aprovado graças ao auxílio didático dela, e ela feliz por sentir-se realmente amada.

Eis que no início do último semestre, Luciene recebeu uma carta, perfumada, com uma poesia linda de Neruda, seu poeta preferido. De imediato pensou que era alguma surpresa de Adaílton, mas sabia que ele jamais lera Neruda, e não era exatamente um cara romântico, apesar de bastante carinhoso. Além do mais, a carta terminava com um enigmático “do seu, sempre seu, R.J.J.”.

Foi para casa intrigada e, lá chegando, havia um ramalhete imenso de lindas rosas champagne. No buquê, outro poema.

As semanas avançavam, permeadas por pequenas surpresas quase bregas, de tão românticas. Sua curiosidade tirava-lhe o sono, quem seria R.J.J., seu admirador secreto?

Na iminência do fim do semestre, quando caminhava apressada rumo ao ponto de ônibus, num dia de muita chuva em que Adaílton não fora a aula para participar de um campeonato de Play Station, Luciene sentiu uma mão firme segurar-lhe o braço esquerdo, seguida por uma voz grave, Posso te dar uma carona?

Era Robson João Junior, o mais popular aluno da faculdade. Um homem lindo, atlético, alto, pele morena, braços fortes e, se não bastasse ostentar a aparência de um deus grego, ainda era rico. Muito rico.

Ao longo do curso, Robson João Junior desfilara de braços dados com as mais estonteantes garotas da universidade, não só da faculdade de Mecatrônica que faziam, mas das outras também.

Na carona que Luciene aceitara, ouviu Robson João Junior discorrer sobre como sofria amando-a em segredo desde o início do curso, como era doído vê-la de mãos dadas com o esquálido Adaílton, como perdia noites de sono imaginando que eram dele as mãos que passeavam pela vasta circunferência do corpo de Luciene.

Luciene ouvia tudo incrédula, só podia ser alguma brincadeira. Mas ela percebia muita sinceridade na maneira como ele falava, na sua voz trêmula e embargada, nos seus olhos visivelmente marejados.

Fica comigo, seja o meu par no baile de formatura, suplicou-lhe Robson João Junior, e ela, que sempre sonhara em fazer alguma loucura arrebatadora na sua vida, de dentro do carro dele ligou para Adaílton e, por telefone, pôs fim ao relacionamento de quatro anos.

Adaílton ficou desconsolado. Não comia, não dormia, era consumido aos poucos pela falta asfixiante que Luciene lhe fazia. Não foi ao baile de formatura, não suportaria ver sua amada de braços dados com outro. Ficou em casa chorando. Chorando muito. E jogando Play Station.

No baile, as outras garotas olhavam-na com raiva, de tanta inveja. Por que fora ela a escolhida? Além de quilos – muitos quilos - o que mais ela tinha que lhes faltava? Mas foi com Luciene que Robson João Junior dançou a valsa dos formandos.

A certa altura da festa, Robson João Junior pediu-lhe licença para ir ao banheiro, deixando-a sozinha na mesa. Ele demorava para voltar, tanto que ela resolveu procurá-lo, para saber se estava tudo bem com seu novo amor. Mas, ao olhar em direção ao bar do salão de festas, viu Robson João Junior rindo efusivamente com seus amigos, apontando em direção a mesa em que ela estava, enquanto guardava um pacote no bolso interno do seu paletó.

Sentiu-se a mais estúpida das mulheres, a mais idiota das mulheres, a mais inocentemente besta das mulheres. Era evidente, tratava-se de uma aposta entre os garotos populares da faculdade. Como ela, que tantas vezes assistira as repetitivas comédias românticas americanas para adolescentes, não percebera o golpe?

Burra, burra, burra, dizia para si mesma sob um pranto convulsivo. Deixou o salão na máxima velocidade que seus tantos quilos permitiam, deixando-o lá com seus amigos, tão desprezíveis quanto ele.

Seu mundo desabara, sua vida não fazia sentido. Como pudera ser tão vil com Adaílton, que tanto bem lhe fizera, abandonando um amor sincero de quatro anos por um flerte obviamente interesseiro de fim de faculdade?

Foi atrás de Adaílton e, arrependida, pediu-lhe perdão pela besteira feita. Compreensivo, ele perdoou, mas nunca mais fora carinhoso como antes. Tornara-se frio, desconfiado. Mesmo assim, casaram-se poucos meses depois e passaram a vida inteira juntos. Tiveram filhos, inclusive. No seu íntimo, sabia que não era exatamente uma mulher feliz. Não fora aquele o amor que sonhara viver. Mas, também, não poder-se-ia dizer que era um amor ruim.

Logo após o episódio do baile, Robson João Junior ligou várias vezes para Luciene, mas ela jamais lhe atendeu. Não respondeu aos emails, mudou de endereço para que ele não soubesse sequer onde encontrá-la.

Desde então, ela fizera questão de não ter qualquer notícia sobre Robson João Junior, Ele que morra, dizia para si mesma, Onde já se viu, me usar para uma aposta, playboyzinho desgraçado de merda filho de uma grandessíssima puta rica!

Se tivesse aceitado receber notícias de Robson João Junior, Luciene saberia que no baile da formatura ele estava rindo de felicidade, contando aos amigos que havia comprado em segredo um lindo apartamento, onde pretendia viver para sempre ao lado de Luciene. Mostrou-lhes rapidamente as lindas alianças que havia comprado, e que pretendia dar a ela naquela mesma noite, mas rapidamente guardou-as no bolso do seu paletó para que ela não desconfiasse de nada. Disse isso apontando em direção a mesa, para que os amigos soubessem onde estava a sua opulenta musa.

Se tivesse aceitado receber notícias de Robson João Junior, Luciene saberia que na noite do mesmo dia em que um amigo em comum disse a ele, Você não sabe? Eles estão se casando hoje, ele se enforcou no banheiro do apartamento que comprara para viver ao lado de Luciene.

Se tivesse aceitado receber notícias de Robson João Junior, Luciene saberia, não era uma aposta.

7 comentários:

Daca disse...

foi assim que tu entrou na esag, chutando B?

Bruna Rafaella disse...

Muito bom...
quero mais!!!

Bjs

mar. disse...

geeeeente...

Shuzy disse...

Partiu-me o coração
hsuahsuhaushuahsua

Shuzy disse...

Don! Vc disse que se inspira em músicas... Mas, vem cá, jura que dessa vez não foi em uma reportagem?
Tipo essa: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/820901-alunos-universitarios-agridem-colegas-da-unesp-em-rodeio-de-gordas.shtml

=D

Don Mattos disse...

Nada, eu que sou um visionário!

Dá só uma olhada na data da reportagem e na data do post!

Eu prevejo o futuro!

Também faço e desmancho qualquer tipo de trabalho!

Pai Mattos de Ogum Megê.

Shuzy disse...

Pai Mattos de Ogum Megê?
Uaauu

Sou meio desatenta pra datas ¬¬