sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Turno das sete


Nunca tivera condições para comprar algo seu. Trabalho ingrato, aquele.

Uma daquelas velhas histórias iguais as de todos nós.

Os donos do negócio, ricos, muito ricos, riquíssimos. Ele, coitado, só mais um operáriozinho, lá da base, lá do primeiro degrau de toda a cadeia, obrigado a cumprir seu expediente às sete da manhã, já ciente da impossibilidade de chegar ao topo.

Mas tudo bem, não tinha mesmo grandes ambições. Ter saído da roça, ter deixado Salto Veloso para trás já lhe parecia bastante bom. E, ainda que jamais acumulasse fortuna ou bens, ainda assim sabia que era o orgulho dos pais.

Tratava de cumprir suas obrigações com capricho, esmero e pontualidade. Não bastava ser bom no ofício, fazia questão de ser exemplar.

Por imposição das circunstâncias, morava num quartinho nos fundos do local de trabalho. O que não era de todo mal, já que não ganhava o suficiente para se comprometer com a Caixa Econômica Federal e seus tantos financiamentos de vinte, trinta anos, pelo menos com aluguel não gastava.

Nos fins de tarde dos dias de folga, gostava de sentar-se na praça, sozinho, ele e seu livro velho.

O livro era o disfarce.

O que ele gostava mesmo era de ficar vendo as meninas saindo da escola.

Pensou que devia ser mais interessante nos tempos de outrora, quando as meninas saíam das escolas trajando aquelas provocantes sainhas cheias de pregas, meias na altura dos joelhos. Devia ser linda a cena que nunca vira, mas tantas vezes imaginara.

Todavia, as calças de ginásticas que as pequenas usam de uniforme nos dias de hoje, mais justas que a conduta de Deus, tornava também as meninas bastante interessantes. Não tinha o charme daquela inocência do passado, mas tinha uma provocação nova naquelas roupas que marcavam as curvas tênues e imprecisas dos corpos infanto-juvenis, ainda decidindo a forma que hão de tomar.

Sentia-se mal com aquilo, mas também os garotos púberes lhe pareciam provocantemente interessantes. A voz aguda, a pele macia do rosto que ainda desconhece a frieza das lâminas de barbear, as pernas finas, tudo aquilo tinha algo que lhe acendia um desejo envergonhado pela consciência do pecado.

Às vezes, levava doces para oferecer-lhes. Eles aceitavam e, o toque puro das suas mãozinhas de unhas roídas, lhe provocava arrepios gelados.

Outro dia, quando encerrara o turno da noite e ligara a televisão para ter dos apresentadores do jornal a companhia que seu prato de sopa não trouxera consigo, assistiu a uma reportagem sobre uma elaborada operação da Polícia Federal que desmantelara uma extensa quadrilha que trafegava pornografias infantis pela internet.

Pensou em comprar um computador, mas achou melhor lavar a louça.

No dia seguinte, a mulher responsável pela limpeza do local onde trabalhava, e também do seu quartinho, viera acompanhada do seu filho menor. Juninho, era como a mãe o chamava.

Ele ofereceu-se para tomar conta do menino, enquanto a mãe cuidava dos seus aposentos.

Juninho derramou um copo de Nescau na sua roupa, a mãe repreendeu-o cheia de contrariedade. Ele intercedeu pelo pequeno, disse que cuidaria dele.

A mãe deixou, ele cuidou.

Levou-o até o banheiro, tirou a camiseta do menino e, muito lentamente, esfregou a sua própria toalha pelo peito do garoto. Fazia isso de olhos fechados.

O menino inerte, deixando-se limpar com a inocência que tanto provoca inveja nos adultos.

Sem muita razão para tanto, abaixou a bermuda de Juninho, e lentamente passou a acariciá-lo de um modo que o menino não entendia, mas achava bom. Foram poucos os minutos que assim ficaram.

Pronto, meu querido, pode ir lá com a sua mãe.

Naquela noite, ele teve sonhos que o inundavam de sensações eróticas, uma excitação profunda.

Revirava-se na cama com a mão por dentro das calças. Correu para o banheiro, banho frio. Sentia-se mal pelas sensações irresistíveis que aquelas lembranças lhe impingiam, mas não conseguia substituir dos seus pensamentos as memórias daquele corpo pequeno e magro. No seu banho, o sabonete lubrificava-lhe as palmas das mãos, que lavavam-no com o desinteresse pela sujeira externa, preocupadas apenas em fazer eclodir aquela sujeira interna, branca e viscosa que ele negava, mas não resistia.

No dia seguinte, pela primeira vez perdeu a hora para o trabalho.

Acordou com as batidas na porta da mulher da limpeza.

Anda, rapaz, você está atrasado.

Levantou assustado, tomou o banho mais rápido de todos os que já tomara, desta vez sem tempo para as impurezas da madrugada.

Secou-se com pressa, vestiu atabalhoado a mesma batina de ontem, e foi rezar a missa das sete.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A verdadeira história de Romeu e Julieta II


Aquele que agora jaz ao lado de uma garrafa long neck de cerveja caída e de um pequeno vidro de veneno, é Romeu.

Assim está, como nós todos podemos bem ver, lábios e dedos arroxeados, olhos saltados e opacos, a língua inchada para fora da boca, mãos contorcidas envolvendo o abdome, como se quisesse arrancar dele algum suplício, provavelmente por causa da dor que deve ter sentido em seu momento derradeiro.

Até poucos minutos atrás, antes de transmutar-se em cadáver, Romeu era, além de
simpatizante de um pequeno e inexpressivo time de futebol, um rapaz bastante vaidoso.
Escolheu aquela que considerava sua melhor roupa para findar sua existência. Uma calça jeans surrada, um par de tênis verde musgo, uma camiseta da marca Liverpool (Compre já a sua!), contendo a estampa que remete a um antigo festival de música e, por cima dela, uma camisa aberta. Só veste a camisa por cima da camiseta, pois a segunda possui manchas claras nas axilas, provocadas pelo seu desodorante Avanço, aroma: “Macho Mentolado”. É provável que se soubesse do aspecto que agora tem, escolheria outra a forma para se auto-vitimar.

Mas ele não sabia e, assim sendo, foi pelo escorregar garganta a dentro do veneno que ele próprio escolheu, que veio a dar cabo de sua pouca vida.

Na verdade, nem era tão pouca assim. Ele já tem –ou tinha, no caso – trinta e sete. Há os que morrem com menos. Há os que aos trinta, trinta e um, descobrem cânceres no pulmão, sem nunca sequer terem fumado e, disso, vão de encontro à senhora ceifadora que gosta muito de trajar preto. Todavia, Romeu aparentava bem menos do que os trinta e sete anos recém encerrados.

Esse cheiro forte e desagradável que você agora sente, não é do desodorante, é do veneno. É muito recente o óbito, para que seja já da decomposição do corpo do suicida apaixonado.

Talvez, ao chegar a seu próximo destino – por não conhecermos muitos detalhes da sua vida pregressa, não nos é possível afirmar se sua morada final será ao lado do Senhor, ou do Diabo – dê-se por falta de algo. Ou alguém, para melhor dizermos.

É que a morte por envenenamento era um tratado entre ele e sua amada, Julieta.

Acreditaram ambos, numa destas tantas idiotices que o amor injeta naqueles que amam, que em outro plano astral poderiam viver plenamente o amor que mutuamente sentiam mas, em função das tantas desventuras e orgulhos bestas desta vida, não conseguiam cultivá-lo por aqui, neste mundo que, por enquanto, ainda estamos a habitar.

Combinaram de tomar simultaneamente a dose de veneno que lhes seria suficiente para que o fim de ambos fosse inevitável. Escolheram beber o veneno num último drink, misturando aquilo que os mataria, na bebida que mais gostavam de beber em vida.

Romeu colocou sua dose de veneno em uma Heiniken, não muito gelada, importante que se
diga, pois fora comprada num posto de gasolina. Julieta, por sua vez, misturou a sua parte do veneno em um coquetel de frutas bem docinho, cor laranja com uma tirinha cor-de-rosa no fundo. Ninguém sabe ao certo do que é feito aquele coquetel, mas que ele embebeda rapidamente, disso não há duvidas.

Mas, para desventura do que fora combinado, o sabor interferiu no fim romântico e tolo que haviam planejado.

Romeu, por ter misturado sua dose de veneno em cerveja, sequer sentiu diferença no amargo do sabor visitante em sua bebida e, de um gole só, tomou o tanto que lhe cabia.

Já Julieta, no primeiro gole que dera em seu coquetel, sentiu o fel que maculava o drink que tanto gostava. Tomou um gole e cuspiu o resto fora.

O socorro médico veio rápido e Julieta, apesar do pouco que bebera, por ser muito magra, sentiu logo as cólicas assassinas da bebida matadora. Entretanto, contorcia-se menos da dor que sentia, do que do desespero por ver ao seu lado o doce Romeu, pronunciando palavras confusas, desconexas, enquanto sua vida se esvaía pela baba que escorria de sua boca. No delírio da morte iminente, ora cantarolava músicas do Bob Dylan, ora cantarolava Shakira.

Você pode até estar pensando que sim, mas lhe afirmo: não! Não se tratava de um mashup feito por Isaac Varzim.

Dos fatos, você ainda não sabe o resto. Mas eu sou um homem bom, não lhe deixaria na
curiosidade. Sigamos com eles, os fatos ocorridos após o ocorrido.

Romeu, como já se sabe, morto está. Julieta, não.

Fora socorrida por um enfermeiro muito gentil e atencioso, de aspecto indizível. Algo entre o Harry Potter e o Salsicha, fiel companheiro do Scoobydoo.

O enfermeiro apaixonou-se por Julieta, e quis lhe oferecer, além dos cuidados clínicos indispensáveis, todo o amor e carinho que sabia-se capaz de dar a alguém, mas que guardara desde sempre a espera da pessoa certa.

Contudo, não fora ele que cativara o coração partido e enlutado de Julieta, e sim, a médica que lhe atendera, já no hospital.

Uma mulher morena, alta, muito elegante que, então, era casada com um homem que
lembrava muito a imagem de Jesus Cristo nos seus melhores dias, mas com alargadores nas orelhas.

Bianca, chamava-se a médica.

Julieta apaixonou-se por Bianca.

E Bianca, a médica, achou o hálito doce de Julieta, ainda com o aroma do coquetel de frutas, melhor do que o bafo de palheiro do seu Jesus Cristo cover.

Antes mesmo de sair do hospital, já estavam decididas, viveriam juntas, felizes e para sempre.

Iriam a todos os lugares, conheceriam as mais belas cidades, as mais belas artes, as festas mais animadas. E, agora que estavam resolvidas em assumir a relação, freqüentariam religiosamente todas as festas GLS que houvesse nos lugares por onde andassem.

Tirariam fotos das pessoas das festas.

Fariam um blogue para postar as fotos das pessoas das festas.

Chamariam as pessoas fotografadas de “amigues”.

Falariam de moda no blogue.

Estando juntas, a vida seria linda, linda, linda.

Só faltava um nome para o blogue.

Bianca sugeriu algo muito delas, bem romântico, algo como Bia & Julie, dentro de um
coraçãozinho.

Mas não, Julieta queria prestar uma última homenagem àquele que, ainda agora, deveria estar sentado em algum banco de ônibus do purgatório, esperando pela sua chegada.

Julieta lembrou-se, então, dos instantes finais de Romeu, quando ele balbuciava palavras ininteligíveis, misturando Bob Dylan com Shakira e, com a concordância de Bianca, batizaram o blogue de: “Donde Estas Corazon”.

Bianca e Julieta, conforme haviam premeditado, viveram felizes para sempre. Chamavam-se de “marida”, no mimo de seus apelidinhos carinhosos.

Talvez a sua curiosidade, ainda descontente com este desfecho, deva estar se perguntando quanto ao destino dos outros três personagens desta triste e bela história.

Não, Jesus Cristo Cover não ficou com o enfermeiro Harry Potter-Salsicha, como talvez a sua mente poluída tenha presumido.

Jesus Cristo cover, depois de ter sido abandonado por Bianca, tornou-se modelo de camisetas e óculos modernosinhos.

O enfermeiro, aquele misto de Harry Potter com o Salsicha do Scoobydoo, bem, dele eu não sei. Dizem que tem dado aulas de clarinete para os aspirantes a músicos da fanfarra do Colégio Coração de Jesus. Mas também dizem que este colégio já não existe mais. Logo, não dou fé desta versão.

E Romeu?

Bem, é o que está escrito logo no primeiro parágrafo. Mas, sendo mais sucinto,acrescentarei um pouco de lirismo valendo-me do artifício das rimas para que, a despeito do infortúnio amoroso do nosso herói, a narrativa termine um bocadinho mais poética:

O Romeu se fodeu!

domingo, 24 de outubro de 2010

A Aposta


Quando queriam referir-se à Luciene, os amigos diziam, Aquela, a cheinha. Mas Luciene não era cheinha, ela era gorda. Bem gorda. Muito gorda.

E não era dessas gordas que as pessoas dizem, Nossa, ela tem um rosto tão bonito, se perdesse uns quilinhos ficaria linda. Além de muito gorda, ela era também feia. Muito feia. De uma feiúra tão feia, que parecia até proposital, mal intencionada. Uma destas feiúras usadas para ameaçar crianças que recusam a salada. Além do mais, no caso dela, perder uns quilinhos não mudaria muita coisa.

Mas Adaílton, seu namorado, amava-a com desmesura.

Ele também era muito feio, e para fazer deles um casal realmente cômico, era muito magro, com constante aspecto de desnutrição aguda. E, embora usasse grossas lentes presas à uma armação de péssimo gosto para atenuar o profundo astigmatismo congênito, e mesmo se vestindo muito mal, não era o que chamam CDF, Nerd, ou algo que o valha. Adaílton era magro, feio, quase cego e tão inteligente quanto um saca-rolhas.

Contudo, como os vestibulares utilizam-se das questões optativas para selecionar os futuros acadêmicos que freqüentarão os bancos das faculdades, Adaílton, num dia de muita sorte, chutou todas as respostas na letra “B”, e passou. Muito bem classificado, inclusive. Quando questionado sobre o por que da escolha pela letra “B”, ele respondia, “B” de boiei, e ria seu riso estridente, desafinado e nervoso, escancarando seu sorriso de dentes pequenos e tortos, presos nas gengivas gigantescas.

Foi na faculdade que Luciene e Adaílton se conheceram. Ele apaixonou-se pela maneira discreta que ela chorou, sem deixar que ninguém notasse as suas lágrimas, quando um dos veteranos fez dela piada, dizendo que se tivesse entrado pelo sistema de cotas, sozinha, ocuparia umas quatro.

Achou tão delicada aquela mágoa contida da sua nova colega de classe, que a paixão projetou-se sobre ele como uma marretada no meio do peito, amassando-lhe o esquelético tórax.

No início, Luciene não dera atenção às sucessivas investidas de Adaílton. Embora já tivesse lá suas parcas experiências sexuais, não costumava dar crédito aos homens, pois, por saber-se feia, não julgava-se capaz de despertar interesse masculino, mesmo num feioso raquítico.

Mas um dia, numa das festas da turma, ela bebeu um pouco a mais, e acabou aceitando ir com ele a um dos quartos. Luciene estava tão bêbada, que sequer notara a halitose azeda de Adaílton. Beijou-o com sofreguidão, arremessou-o contra a cama, levantou o seu vestido e subiu em cima dele, cheia de voluptuoso apetite.

Mais tarde, quando saíam do hospital, ela não encontrava maneiras de se desculpar por ter lhe deslocado a bacia. Mas ele estava em êxtase, só por saber que sua amada estava ali ao seu lado, preocupada com o seu bem-estar. Foi então que começaram a namorar.

E o namoro transcorreu firme durante todo o curso, ele sendo aprovado graças ao auxílio didático dela, e ela feliz por sentir-se realmente amada.

Eis que no início do último semestre, Luciene recebeu uma carta, perfumada, com uma poesia linda de Neruda, seu poeta preferido. De imediato pensou que era alguma surpresa de Adaílton, mas sabia que ele jamais lera Neruda, e não era exatamente um cara romântico, apesar de bastante carinhoso. Além do mais, a carta terminava com um enigmático “do seu, sempre seu, R.J.J.”.

Foi para casa intrigada e, lá chegando, havia um ramalhete imenso de lindas rosas champagne. No buquê, outro poema.

As semanas avançavam, permeadas por pequenas surpresas quase bregas, de tão românticas. Sua curiosidade tirava-lhe o sono, quem seria R.J.J., seu admirador secreto?

Na iminência do fim do semestre, quando caminhava apressada rumo ao ponto de ônibus, num dia de muita chuva em que Adaílton não fora a aula para participar de um campeonato de Play Station, Luciene sentiu uma mão firme segurar-lhe o braço esquerdo, seguida por uma voz grave, Posso te dar uma carona?

Era Robson João Junior, o mais popular aluno da faculdade. Um homem lindo, atlético, alto, pele morena, braços fortes e, se não bastasse ostentar a aparência de um deus grego, ainda era rico. Muito rico.

Ao longo do curso, Robson João Junior desfilara de braços dados com as mais estonteantes garotas da universidade, não só da faculdade de Mecatrônica que faziam, mas das outras também.

Na carona que Luciene aceitara, ouviu Robson João Junior discorrer sobre como sofria amando-a em segredo desde o início do curso, como era doído vê-la de mãos dadas com o esquálido Adaílton, como perdia noites de sono imaginando que eram dele as mãos que passeavam pela vasta circunferência do corpo de Luciene.

Luciene ouvia tudo incrédula, só podia ser alguma brincadeira. Mas ela percebia muita sinceridade na maneira como ele falava, na sua voz trêmula e embargada, nos seus olhos visivelmente marejados.

Fica comigo, seja o meu par no baile de formatura, suplicou-lhe Robson João Junior, e ela, que sempre sonhara em fazer alguma loucura arrebatadora na sua vida, de dentro do carro dele ligou para Adaílton e, por telefone, pôs fim ao relacionamento de quatro anos.

Adaílton ficou desconsolado. Não comia, não dormia, era consumido aos poucos pela falta asfixiante que Luciene lhe fazia. Não foi ao baile de formatura, não suportaria ver sua amada de braços dados com outro. Ficou em casa chorando. Chorando muito. E jogando Play Station.

No baile, as outras garotas olhavam-na com raiva, de tanta inveja. Por que fora ela a escolhida? Além de quilos – muitos quilos - o que mais ela tinha que lhes faltava? Mas foi com Luciene que Robson João Junior dançou a valsa dos formandos.

A certa altura da festa, Robson João Junior pediu-lhe licença para ir ao banheiro, deixando-a sozinha na mesa. Ele demorava para voltar, tanto que ela resolveu procurá-lo, para saber se estava tudo bem com seu novo amor. Mas, ao olhar em direção ao bar do salão de festas, viu Robson João Junior rindo efusivamente com seus amigos, apontando em direção a mesa em que ela estava, enquanto guardava um pacote no bolso interno do seu paletó.

Sentiu-se a mais estúpida das mulheres, a mais idiota das mulheres, a mais inocentemente besta das mulheres. Era evidente, tratava-se de uma aposta entre os garotos populares da faculdade. Como ela, que tantas vezes assistira as repetitivas comédias românticas americanas para adolescentes, não percebera o golpe?

Burra, burra, burra, dizia para si mesma sob um pranto convulsivo. Deixou o salão na máxima velocidade que seus tantos quilos permitiam, deixando-o lá com seus amigos, tão desprezíveis quanto ele.

Seu mundo desabara, sua vida não fazia sentido. Como pudera ser tão vil com Adaílton, que tanto bem lhe fizera, abandonando um amor sincero de quatro anos por um flerte obviamente interesseiro de fim de faculdade?

Foi atrás de Adaílton e, arrependida, pediu-lhe perdão pela besteira feita. Compreensivo, ele perdoou, mas nunca mais fora carinhoso como antes. Tornara-se frio, desconfiado. Mesmo assim, casaram-se poucos meses depois e passaram a vida inteira juntos. Tiveram filhos, inclusive. No seu íntimo, sabia que não era exatamente uma mulher feliz. Não fora aquele o amor que sonhara viver. Mas, também, não poder-se-ia dizer que era um amor ruim.

Logo após o episódio do baile, Robson João Junior ligou várias vezes para Luciene, mas ela jamais lhe atendeu. Não respondeu aos emails, mudou de endereço para que ele não soubesse sequer onde encontrá-la.

Desde então, ela fizera questão de não ter qualquer notícia sobre Robson João Junior, Ele que morra, dizia para si mesma, Onde já se viu, me usar para uma aposta, playboyzinho desgraçado de merda filho de uma grandessíssima puta rica!

Se tivesse aceitado receber notícias de Robson João Junior, Luciene saberia que no baile da formatura ele estava rindo de felicidade, contando aos amigos que havia comprado em segredo um lindo apartamento, onde pretendia viver para sempre ao lado de Luciene. Mostrou-lhes rapidamente as lindas alianças que havia comprado, e que pretendia dar a ela naquela mesma noite, mas rapidamente guardou-as no bolso do seu paletó para que ela não desconfiasse de nada. Disse isso apontando em direção a mesa, para que os amigos soubessem onde estava a sua opulenta musa.

Se tivesse aceitado receber notícias de Robson João Junior, Luciene saberia que na noite do mesmo dia em que um amigo em comum disse a ele, Você não sabe? Eles estão se casando hoje, ele se enforcou no banheiro do apartamento que comprara para viver ao lado de Luciene.

Se tivesse aceitado receber notícias de Robson João Junior, Luciene saberia, não era uma aposta.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Só mais cinco minutinhos


Morri na noite passada.

Talvez você até já esteja sabendo, por via das dúvidas, fica aqui o comunicado oficial.

Há sete meses, o médico havia dito que não passaria de quatro. Vivi mais três, só por desaforo. E o mais legal de tudo, não foi o pulmão que me matou, haha, o médico se deu mal!

Foi naquele dia que deixei você, que eu soube que estava doente. Não disse nada, pois estávamos desgastados demais, isso pareceria mais uma tentativa de fazer dar certo algo que já se arrastava há muito tempo. Se não deu certo quando estava bem, não seria estando doente que saberia fazer as coisas funcionarem. Não queria fazer você sofrer uma vez mais, me vendo definhar. Mas enfim, morri e cá estou eu, acredite se quiser, no céu.

Você estava certa, como sempre, e eu errado, como sempre. Deus existe.

Fiquei puto quando descobri. Você sabe, tenho muita dificuldade em admitir que estou errado. Mas ele existe, e é gente boa, até. É meio inseguro com a aparência, andava pensando em tirar a barba, deixar só o bigode. Disse a Ele pra não fazer isso, vai ficar com cara de vascaíno, se deixar só o bigode, falei pra Ele. Foi aí que Ele desistiu da ideia. Ele não curte muito o Vasco, diz que copiou o uniforme do seu time.

Deus torce para a Ponte Preta, e é por isso que, mesmo com mais de cem anos, ela nunca ganhou nada. Disse que se a Ponte ganhar algum título, vão sair falando que Ele fez mutreta, que só ganhou por que é o time que Ele torce e tal.

Deus é um cara honesto, mas é muito ruim na canastra. Se pudesse jogar a dinheiro, já teria ganhado uma boa grana nas costas Dele. Mas aceitou uma apostinha, se eu ganhasse numa melhor de três, teria o direito de falar contigo mais uma vez. Falou até que eu poderia escolher a maneira, através de carta psicografada, algum médium incorporado, mas escolhi esta por que, você sabe, sempre adorei te ver dormindo. Assim, além de falar com você mais uma vez, ainda posso te ver dormindo mais uma vez.

Não entendi direito por que fui recebido no céu, depois de tanta maledicência. Ele disse que achava minha rabugice divertida, não me condenaria só pelo meu mau humor. Disse também que fui uma boa pessoa, apesar de tudo. Isso me conforta um pouco, vindo Dele.

Você também tinha me dito isso, apesar de tudo.

Deus gosta muito de você, e me garantiu que você terá uma vida muito boa. Vai ter um pouco mais de sofrimento agora, mas depois as coisas se acalmarão, a poeira vai baixar, a dor vai virar uma saudade boa. Li numa reportagem, uns meses atrás, que o amor serve como analgésico. Coisa química, mesmo. Quem ama, sente menos dor. Claro que com a perda do amor, sofre-se um bocado, como se o amor fosse um veneno queimando tudo por dentro. Mas o antídoto é sempre feito a partir do veneno, a velha fórmula do soro antiofídico. Esse mesmo amor que agora vai doer, talvez até mais do que já doeu há tempos atrás, vai ser a cura da dor. Vai transformá-la numa saudade boa, numa fotografia bonita de uma época gostosa, e depois disso, você vai ser feliz. Ele me deu a Sua palavra, você ainda vai ser muito feliz.

Eu tinha planos de te encontrar uma vez mais, esclarecer várias coisas sobre a nossa história, te dar algumas dicas sobre uma grana que deixei no banco, em seu nome, te pedir um favor lá na empresa, tem um pepino que não resolvi, mas é coisa simples, só precisa levar um envelope para uma pessoa que você, se puder e quiser, poderá fazer para mim. E, melhor de tudo, vou te dizer os números da mega-sena! Tua nova vida vai começar com muita grana no bolso! O que eu deixei no banco vai ser dinheiro de pinga, perto da bolada que você vai ganhar! Se tivesse morrido da doença, teria tido tempo de te encontrar e falar o que eu tenho pra te dizer pessoalmente, exceto os números da mega, claro. Mas você sabe que eu sempre fui de adiar tudo, sempre acreditei que teria uma próxima oportunidade.

Só não contava com um caminhão na contramão...

Enfim, deixe-me ver por onde começo. Imaginei começar pelos números da mega, mas talvez você os esqueça depois do resto que vou contar. Então, deixemos os números para o final. Primeiro o favorzinho, lá na empresa, em cima da minha mesa eu deixei um envelope, dentro dele tem um relatório que... Não... Cacete, isso é hora para o telefone tocar? Não acorda, por favor, vou ser breve, você só precisa dormir mais um pouco, eu não vou ter outra chance. Vamos pular essa parte, só memorize os números, por favor, não vá esquecer, então, o primeiro é... Não! Não acorde, por favor! Só mais cinco minutinhos, trinta segundos serve, por favor... Não...

Alô?

Oi, te acordei?

Não, quer dizer, sim, mas tudo bem. Estava tendo um sonho muito estranho, foi bom você ter ligado. Mas por que você tá ligando a essa hora?

Você ainda não soube?

Soube o quê?

Olha, não queria ser eu a te dar essa notícia, mas você precisa saber.

O quê? Fala logo, você tá me deixando apavorada!

...

Anda, fala!

Um caminhão na contramão, um acidente horrível.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A parábola da (im)paciência


Alfredinho, filho de Alfredão, apontava com as mãos trêmulas a arma em direção ao peito de Davi, melhor amigo de seu pai desde os tempos de infância.

Davi constatava, então, que era verdade aquela velha história de que, na hora da morte, a vida inteira passa diante dos olhos, como um enorme filme instantâneo.

Desde sempre, Davi evitava os conflitos. Resolvia as coisas da maneira mais simples possível, só para fugir de qualquer espécie de confronto.

Na juventude, quando seus amigos envolveram-se com uma passeata para diminuir as passagens dos ônibus da cidade, Davi preferiu comprar uma bicicleta para ir à faculdade.

Alguns dos seus colegas o aporrinharam chamando-o de traíra, de alienado político, ele respondia-lhes com a singela sinceridade que lhe era particular, Foda-se!

Outros, gostaram da ideia. Os eco-chatos da época, até congratularam-no pela iniciativa, pois contribuía para um mundo com menos poluição. Ele respondia-lhes, Poluição é o caralho, foda-se o meio-ambiente, só quero ir para a faculdade sem que me encham o saco.

Na primeira oportunidade em que uma de suas namoradas tentava discutir a relação, Davi encerrava o caso por ali mesmo, Tá bom, tá bom, você está certa, eu estou errado, vamos ficar por aqui mesmo, vá atrás de outro que não seja assim tão ruim quanto eu. Quando elas argumentavam, dizendo que não pretendiam terminar, apenas melhorar a relação, ele mandava-as à merda, dava as costas e saía andando.

Contudo, a história que agora marcava presença em suas lembranças pré-assassinato, era a conversa que tivera há alguns anos com Alfredão, pai do seu potencial assassino. Alfredão era um homem instável emocionalmente, embora fosse muito amigo, extremamente solícito a todos que dele precisassem, era insatisfeito consigo mesmo, depressivo patológico. Dependia de antiansiolíticos para manter o mínimo de normalidade no seu cotidiano. Pois eis que nesta oportunidade, Alfredão teve o mais grave dos seus surtos, abandonou a mulher, grávida de seis meses, largou o emprego, deixou de lado a pós-graduação, pegou o carro e foi-se embora sem destino, rodou a ermo, chorando copiosamente sem entender as razões do pranto.

Depois de dias sumido, Alfredão ligou para Davi e pediu que o encontrasse, precisava desabafar.

Davi foi ao seu encontro. Alfredão falava, entre soluços, da sua angústia com as incertezas da vida, não conseguia se sentir seguro, não consegui se sentir capaz de transmitir segurança à sua família, não se sentia realizado no trabalho, perdia o sono questionando a existência de Deus, e sentia-se em pecado mortal, cada vez que cogitava a possibilidade Dele não existir. Alfredão tremia de ansiedade cada vez que buscava respostas para as perguntas que acompanham a humanidade desde antes dela existir, De onde viemos? Para onde iremos? O que acontece depois da morte? Vamos para o céu, inferno, purgatório? Eu não sei, eu não sei, eu não sei! Gritava chorando convulsivamente. Alfredão chorava pensando nas pessoas que passavam fome enquanto ele gastava seu dinheiro em garrafas de vinhos e restaurantes japoneses. Alfredão, sofria, sofria muito, sofria por nada, sofria por tudo.

Você tomou os seus remédios? Perguntou Davi.

O quê?

Os remédios, aquelas porras daqueles antidepressivos, você tem tomado aquelas merdas todas?

Porra, Davi, eu aqui falando dos problemas da humanidade, do universo, e você preocupado com remédios tarja preta?!

Escute aqui, Alfredão, você sabe que eu sou seu amigo. Você me chamou aqui para lhe aconselhar, certo?

Certo.

Então preste atenção, vou falar só uma vez, se você quiser escutar, ótimo, se não quiser, foda-se. Sabe o universo, a morte, a vida, Deus, as criancinhas que passam fome no nordeste, sabe essa merda toda?

Sei...

Então, ficar chorando por essa porra toda, não vai mudar em nada a sua vida, deixa de ser cuzão e vá se preocupar com a merda da prestação do seu carro, antes que ela atrase.

Não é assim, Davi, você tá sendo muito insensível, não é assim que as coisas funcionam.

Não é assim o caralho! O mundo é cruel, fazer o quê? Ficar aí chorando como uma velha resmungona não vai resolver porra nenhuma, deixa de ser idiota. Você não é tão importante quanto pensa que é. O mundo tá cagando e andando pra você, e vai ser sempre assim, foda-se a merda do planeta, vá cuidar da sua vida que é o melhor que você faz. Sua mulher tá grávida, cacete, vá cuidar do seu filho que tá pra nascer e pára de frescura.

Eu não sei se consigo.

Bom, então faça o seguinte: se mate.

O quê?

Isso mesmo, pára de encher o saco e enfia uma bala na cabeça, se joga do alto de um prédio, amarra uma bigorna no pescoço e pula da ponte, sei lá, se mate de uma vez e pare de encher o saco.

Mas isso é conselho que se dê para um amigo que te pede ajuda?

Olha, só te dou esse conselho exatamente por ser seu amigo. Outra pessoa passaria a mão na sua cabeça burra e deprimida, eu sou sincero, só amigos de verdade sabem ser sinceros. Por isso, insisto, pára de encher o saco e se mate de uma vez.

Depois daquele dia Alfredão mudou. Acordou para a vida. Encheu-se de coragem e assumiu as rédeas do seu destino. Voltou para o emprego, conquistou o respeito e a admiração de todos ao seu redor, tornou-se um ótimo marido e pai exemplar.

Tudo transcorria perfeitamente bem, até o último domingo.

Alfredão encontrou-se com Davi num barzinho, ambos tomavam cerveja e conversavam sobre a vida, quando Alfredão resolveu rememorar aquela conversa que, para ele, servira como um grande divisor de águas.

Davi, só posso te agradecer por aquela conversa, você me abriu os olhos com a sua franqueza. Psiquiatra nenhum do mundo saberia me chamar para a realidade como você fez. Por mais que você não quisesse que eu realmente me matasse, a dureza das suas palavras me deram a sacudida que eu precisava para me tornar senhor da minha vida. Eu sei que aquilo não era o que você desejava que acontecesse, mas só um amigo de verdade seria capaz de mexer com meus brios daquele jeito.

Não, não, você tá errado.

Como assim?

Eu realmente queria aquilo. Não falei nenhuma daquelas merdas para te sacudir, te chamar para a realidade ou qualquer destas bostas de auto-ajuda. Eu falei na esperança que você realmente se matasse.

O quê?

Cara, ninguém te agüentava mais, você tava chato pra caralho, sempre deprimidinho pelos cantos, aquele chororô do cacete que não acabava nunca.

Vocês não gostavam de mim?

Gostávamos, claro. Gostamos, mas você sabe como eu sou, prefiro resolver de uma vez do que ficar me arrastando em ladainhas que não vão chegar a lugar nenhum. Se resolver o problema fosse te enterrar, que você se matasse, então. Seria melhor para todo mundo.

Depois daquela conversa, a depressão voltou como uma avalanche em cima da cabeça de Alfredão. Além de sofrer pelas mesmas velhas coisas sobre as quais ele não tinha poder de interferir, sofria ainda mais imaginando-se desagradável para os que viviam ao seu redor, não suportou o desespero de imaginar-se um estorvo e, na madrugada de domingo para segunda, provou no céu da sua boca o gosto da pólvora que estilhaçou sua cabeça.

Alfredinho tremia, seus olhos lacrimejavam de raiva diante de Davi. Na sua carta de despedida, Alfredão narrava a conversa com Davi, e na confusão do surto, agradecia ao amigo por lhe abrir os olhos e fazê-lo perceber o quão desnecessário ele era para a humanidade.

Davi impacientava-se com o discurso de vingança que Alfredinho lhe obrigava a ouvir.

Ô moleque, disse Davi, chega de lenga-lenga! Foda-se o seu desespero, a sua tristeza, a infelicidade da sua família. O problema não é meu, seu pai se matou de idiota. Era meu amigo, gostava muito dele, mas era idiota, fazer o quê?! Não queria que isso acontecesse, mas aconteceu, não posso fazer nada.

Você é muito insensível!

Insensível é o caralho, eu sou prático. Vai me matar? Então pára de empombação e aperta logo essa porra de gatilho.

Assim? Simples desse jeito? E a sua família? E os seus filhos?

Fodam-se eles. Vou ter que morrer um dia mesmo, pelo menos assim o prêmio do seguro de vida vai ser maior. Vão ter um bom dinheirinho para confortar a dor da minha perda.

Alfredinho mirou a cabeça, apertou o gatilho, mas alvejou o braço de Davi.

Porra, gritou Davi, seu moleque burro do caralho! Tá na minha frente e consegue errar a porra do tiro! Atira de novo, seu merda, vê se dessa vez não erra!

Alfredinho atirou de novo, mas com as mãos trêmulas, errou o tiro a bala ricocheteou no chão, e acertou de novo o mesmo braço que já havia sido baleado.

Burro, burro, burro! Seu burro do caralho! Atira direito essa merda, cacete! Você é burro como o seu pai, caralho!

Alfredinho ficou furioso. Disparou mais três vezes a arma, dessa vez não errou. Dois tiros acertaram o peito de Davi, o terceiro perfurou-lhe o pescoço.

Antes de morrer, Davi arrastou-se até Alfredinho, agarrou-lhe uma das mãos, e sussurrou com o fiapo de voz que ainda lhe restava:

Foda-se, seu merdinha do caralho!

Davi morreu, e acabou a história.


Moral da história?

Foda-se, moral da história é o caralho.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A Genética do Corno


Ô, rapaz, que cara é essa?

Cara de cu. Cara de cu cagado. Desce uma cerveja. Não, cerveja não, me dá uma cachaça. Daquelas de garrafa de plástico, da bem vagabunda. Quero um maço de cigarros, também.

Desde quando você fuma?

Desde agora. Era pra ter começado ontem, mas não gosto de começar nada na lua minguante. Chega de pergunta idiota e me dá logo esse cigarro.

Por quê isso agora?

Suicídio.

Fumando? Vai demorar um pouco.

Não tenho pressa. Quero me matar aos poucos, para ter certeza que vou sofrer bastante. Quero me matar de câncer.

Bom, você que sabe. Ô Juca, desce aí uma cachaça que eu vou acompanhar o meu amigo descornado aqui. Dor de amor perdido se cura na cachaça mesmo. Levou um pé na bunda daquela uma que você tava comendo, não foi? Um pé na bunda da casada.

Antes fosse. Pior, muito pior. Valeu, Juca.

Puta merda, você engravidou a mulher do outro!

Nada, fiz vasectomia, você sabe.

Claro, claro. Mas o que houve, então?

Pedi para ela deixar o corno pra ficar comigo.

Sério? E ela não quis?

Pelo contrário, falou que hoje mesmo arruma as coisas e vai fugir comigo. Disse que o corno vai chegar tarde em casa. Deve estar fazendo as malas agora.

Mas não era o que você queria? Qual o problema?

Claro que não, tá maluco? Você já me viu de namoro sério com alguém? Só me meto com mulher casada exatamente pra não ter dor de cabeça.

Então por que você fez a proposta, se não era o que você queria?

Sei lá, a foda foi boa. Uma trepada daquelas de deixar o cara zonzo. Falei por que tava com o cérebro dormente, meio chapado da gozada.

Falei pra você que esse negócio de andar com mulher casada ainda ia dar merda.

E da fedida...

Você devia ter mais respeito pelos casamentos, pelas famílias.

Ah, Bigode, não vai querer me dar sermão agora. O cara é baixinho, porra!

E daí? O que uma coisa tem a ver com outra?

Como “e daí”? Baixinho tem que ser corno. Ser baixinho é pré-disposição genética para a cornitude. Mulher gosta de homem alto. Só ficam com baixinhos por falta de opção. No começo acham engraçadinho, fofinho, mas depois o que elas querem mesmo é um homem alto, grande, que permita que elas usem salto-alto, que dê conta de erguê-las pela cintura e prensá-las contra a parede. Baixinho não dá conta disso.

E agora?

Agora vim aqui me matar. Assim me livro dela e do corno. Já comi tudo que é mulher que eu queria, de tudo que era jeito, não tenho muito mais o que fazer mesmo.

Que é isso, rapaz? Você é muito novo para falar uma besteira dessas.

Não meço meu tempo em anos, mas em bocetas. Já tô bem velhinho, vá por mim. E, no mais, a foda de hoje foi um belo dum gran finale.

Não quero lhe desanimar, mas você não vai ficar com câncer com apenas uma carteira de cigarro. Demora um pouquinho mais, caso você não saiba. Que é isso? Que arma é essa, rapaz? Deixa de bobeira. Não vá se matar, rapaz. Pelo menos não no meu boteco. Dá essa merda aqui, deixa isso comigo.

Não.

Anda, rapaz. Você tá nervoso, deixa disso, dá essa arma aqui.

Não.

Eu sou teu amigo, vá por mim, não é assim que você vai se livrar dos seus problemas. Isso, me dê essa arma, assim, isso. Deixa esse negócio comigo, tome mais um trago para relaxar, fume outro cigarro. Depois você vai pra casa, toma um bom banho, dorme, descansa, amanhã você vai estar com as ideias no lugar, vai esquecer essa besteira de se matar.

Bigode, eu vim aqui pra me matar, e vou me matar.

Deixa disso, rapaz, deixa disso...

Bigode...

Que foi, rapaz?

É a sua mulher que tá arrumando as malas agora.

O QUÊ?

Isso mesmo, é a Jandira que tá arrumando as malas agora.

VOCÊ TÁ DE PALHAÇADA COMIGO, SEU MOLEQUE?

Não, tava de palhaçada com ela.

SEU FILHO DA PUTA, EU FALEI PARA NUNCA CHEGAR PERTO DA MINHA MULHER, SEU DESGRAÇADO!

Porra, Bigode, se olhe no espelho. Você é quase anão, careca, barrigudo, usa camisa polo listrada, com brasão bordado, camisa polo listrada com brasão, Bigode, coisa de corno! Você passa toda noite fora atendendo um bando de bêbados. Porra, Bigode, você usa bigode, Bigode. Não bastasse ser baixinho, você ainda usa bigode, Bigode!

SEU FILHO DUMA VAGABUNDA!

Você nasceu pra ser corno, Bigode, pelo menos foi comigo, que sou teu amigo. Podia ter sido qualquer um. A Jandira é bem gostosinha, e não é exatamente uma santa, mas pelo menos foi comigo, que sou teu amigo, não foi com um vagabundo qualquer. Foi com um vagabundo de casa.

SEU PUTO DE MERDA, EU FALEI QUE SE VOCÊ CHEGASSE PERTO DA JANDIRA EU TE MATAVA, SEU FILHO DA PUTA, EU FALEI QUE TE MATAVA!

Eu sei, a arma tá aí na sua mão.

FILHO DA PUTA! EU VOU TE MATAR, SEU FILHO DUMA PUTA!

Anda, Bigode, pára de empombação e anda logo com isso. Pendura aí a cachaça e o cigarro, e descarrega logo essa merda em cima de mim.

O CARALHO! VOU TE MATAR É O CARALHO!

Que é isso, Bigode? Vira essa arma pra cá! Pára com isso Bigode, quem tem que morrer sou eu!

O CACETE! QUEM VAI MORRER SOU EU E VOCÊ VAI FICAR COM A VACA DA JANDIRA!

Com licença, posso falar com vocês?

JANDIRA? O que você tá fazendo aqui?

Vim me despedir.

Olha, Jandira, você não precisa se despedir, não. Fica com o seu marido, vocês têm uma família, uma família linda.

Eu não vou fugir com você.

NÃO?

Hahaha, se fodeu, sua amante não lhe quer mais, seu merda! Mas eu também não te quero mais, sua desclassificada.

Se quisesse, não faria diferença nenhuma.

O quê?

Vim aqui me despedir de vocês dois. Estou indo embora com o Juca.

O QUÊ? VOCÊ VAI DEIXAR O SEU MARIDO POR UM GARÇOM?

VOCÊ IA FUGIR COMIGO, AGORA VAI ME DEIXAR POR UM GARÇOM?

DEIXA DE SER MALUCA, JANDIRA, VOCÊ NÃO PODE ME DEIXAR!

ISSO, VOCÊ NÃO PODE DEIXAR A GENTE!

A GENTE É O CARALHO!

Desculpe, força do hábito.

Olha, vocês são legais e tudo, mas porra, você tem 1,60, Bigode. Mulher não gosta de homem baixinho.

Peralá, se o problema é esse, eu tenho 1,80.

O Juca tem 1,94. Adeus.

Jandira...

JANDIRA...

Ela foi embora.

Tô vendo.

Bandida!

Não fala assim da minha mulher!

Foi mal.

Desgraçada... Garçom filho da puta!

Puta dum filho da puta!

Outra dose?

Você me acompanha?

Claro. Me passa o isqueiro, por favor.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Abolicionista


Sei lá, não gosto de pretos.

Deixa de ser escrota, menina.

Ui, seu grosso.

Grosso é como você imagina o pau dos negões, quando não tem ninguém por perto e você se diverte com seu chuveirinho no banho.

Ei, pode ir parando por aí, não lhe dei essa liberdade para falar comigo desse jeito.

E eu não lhe dei a liberdade para manifestares seus ideais escravistas perto de mim.

Não disse que sou escravista, só que não gosto de pretos. É um direito meu, oras. Algumas mulheres não gostam de baixinhos, outras odeiam os barrigudos, outras passam longe dos carecas. Eu não gosto de homem preto, só isso. É pecado ser sincera?

Isso não me parece sinceridade, me lembra mais hipocrisia mesmo.

Hipocrisia é se fingir de íntegro ao ponto de não ter qualquer tipo de preconceito. Todo mundo tem o seu, normalmente mais de um. Eu admito, isso não é hipocrisia. Não finjo ser ou gostar de algo que não sou.

Preta, no caso.

Isso, não sou preta, e daí? É crime ter nascido branca, ter descendência européia?

Escute aqui, minha neguinha.

Escute aqui você, primeiro eu não sou “neguinha”, e segundo, muito menos sou sua.

Mas você é brasileira, seus antepassados eram europeus, não você. Você é brasileira e todo brasileiro é meio preto também.

Olha bem para minha cara, olha bem para minha pele. Tem alguma coisa de preto, escuro, mulato em mim?

Sua pele não diz o que é seu sangue. Por mais que isso macule seus falsos parâmetros de beleza alva, se não você, em algum momento alguém da sua família já comeu ou deu para alguém de pele negra.

Talvez na sua família, não na minha.

Você não está na Noruega, não existem brancos no Brasil. Os que são meio brancos ficam torrando nas praias para deixar suas peles escuras. Mas nem eles são tão brancos assim.

Não gosto tanto assim de praia.

Mentira.

Verdade, acho meio vulgar essa exposição toda. As mulheres quase nuas se exibindo para homens tão semi-nus quanto.

Outra mentira. Mentira de mulher que não tem bunda, que não tem peito. Seu sonho era ter uma bela bunda, uma bunda de mulata, uma bunda de passista, só para poder enfiar o seu rabo num biquíni minúsculo e ficar sob o sol, deitada de costas numa canga, esperando que o sol desenhe um pouco abaixo da sua cintura um “v” branquinho, aquelas marquinhas que estampam as Playboys e Sexys que a cada mês trazem os pôsteres que cobrirão as paredes das borracharias, e que serão o sonho de consumo do seu futuro marido. Toda mulher sonha em se ver de espartilho, de calcinha fio dental, de meias 7/8. Mas coxa e bunda não é uma graça que Deus concede a todas. E ele se esqueceu de você, fazer o quê? Mas que você queria uma bela bunda para exibir na praia, tenho certeza que queria.

Você acha que entende muito de mulheres, da vida, né?

Não, de jeito nenhum. Mas entendo do óbvio. E, sem querer lhe ofender, mas você é bastante óbvia. Não gosta de preto, mas escuta Lenny Kravitz no som do seu carro. Não gosta de preto, mas diz que acha Cartola gênio, quando quer se fazer de culta entre os seus amigos. Não gosta de preto, mas discursa contra o preconceito norte-americano. Ou estado-unidense, sei lá, vá que você queira também se fazer de latino-americana contra a empreitada imperialista. Não gosta de preto, mas nos anos noventa ralava na boquinha da garrafa, depois desceu até o chão no baile funk, tudo música de preto. Preto como eu, como você.

Talvez isso deixe você frustrado, mas eu gosto de ser branca.

Gosta, mas quando você vai à festas fica horas no salão fazendo cachos, disfarçando a lisura dos seus cabelos, tentando imitar os cachos das pretas. Gosta de ser branca, mas usa aquele batom que a propaganda diz que deixa os lábios inchados, mais grossos. Você queria ter lábios carnudos, como os lábios das pretas. E se você não fosse uma fodida, faria uma plástica, injetaria silicone ou algo parecido nos lábios, só para deixá-los carnudos. Como os de uma bela preta.

Olha, você até que é bonitinho, quando me ofereceu uma cerveja, até pensei que poderia rolar alguma coisa, mas em menos de cinco minutos de conversa você só fez me criticar. Me criticando por eu ser sincera, falar a verdade, falar o que eu penso. Com licença, já perdi tempo demais com você.

Eu que o diga.

Tchau.

Quer que eu chame um táxi?

Não, obrigada. Sou fodida, mas tenho carro. Vou pra minha casa ouvindo Lenny Kravitz no som do meu carro.


Horas mais tarde, já em casa, depois de um longo e demorado banho, onde o registro da potente ducha quase não foi apoio suficiente para os ímpetos sexuais do seu chuveirinho, ela sentiu fome.

Pensou em descer e comer um cachorro quente.

Não queria sair de casa.

Pensou em pedir uma pizza.

Lembranças do chuveirinho, o tesão ainda não acabara.

Uma portuguesa, talvez.

Vestia apenas um hobby, nada por baixo. Cruzou as pernas, e aquele roçar da pele de uma coxa na outra, a fez fechar brevemente os olhos.

Não, portuguesa não. Calabresa, talvez.

Lentamente, deixou que uma coxa escorregasse sobre a outra, indo até o joelho e voltando.

Onde está a lista telefônica?

Levantou e foi procurá-la, com passos curtos, as pernas muito juntas. Parou um pouco e comprimiu-as, uma contra a outra. Aquela contração, ah, aquela contração...

Não encontrou a lista, mas o jornal de domingo estava na mesinha de centro. Abriu, foi aos classificados.

O dedo indicador da mão direita passeava entre os anúncios, atrás de algum que matasse a sua fome.

A mão esquerda, insolente que só ela, entrou no hobby, tocando-lhe muito de leve um dos seios, acariciando com muita delicadeza o mamilo eriçado, querendo que aqueles dedos fossem lábios, fossem língua.

Alô?

Sim?

Quem fala?

Quer falar com quem?

É sobre um anúncio no jornal.

Pois não?

Marçal?

Um metro e noventa, ombros largos, porte atlético, oitenta e sete quilos, vinte e um centímetros.

Mulato?

Negro.

Anote o meu endereço, por favor.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Um pequeno conforto após o resultado das eleições


Pois eis que findaram as eleições de 2010, exceto a presidencial.

Dos candidatos que votei, apenas Angela Albino elegeu-se deputada estadual, no mais, fui um retumbante fracasso. Meus candidatos todos perderam, mas tudo bem. Perder faz parte do jogo.

Já não estou mais revoltado com o fato de o tribunal superior eleitoral ter permitido a candidatura do Tiririca. Se quase um milhão e meio de pessoas votaram nele, ele mereceu ser eleito.

Pior do que tá fica. Fica e ficou. E é merecido que fique muito pior. Desejo do fundo do meu coração que estes um milhão e meio de pessoas que votaram no Tiririca, tenham todo o dinheiro que pagam - se é que pagam - nos seus impostos, desviado, roubado ou utilizado de uma maneira totalmente despreocupada com o bem estar social, com o compromisso genuíno com a causa pública. Sim, existem pessoas com este comprometimento, poucas, é verdade, mas elas existem. Desejo que estes eleitores se estrepem ouvindo "Florentina de Jesus."

Sinto pelos outros paulistas que certamente estão inconformados com o papelão que seus concidadãos fizeram.

Fico feliz por termos um segundo turno para presidente, embora a minha candidata não tenha passado a diante. Acho positivo. Quem sabe agora a Dilma resolva entrar na campanha, ao invés de tercerizá-la ao sorriso e fala mansa do Lula. Ou talvez seja o contrário, talvez agora é que ele tome conta de tudo, para não correr o risco de ver o Gargamel assumir a sua cadeira no Palácio do Planalto. Independente de quem ganhe, uma coisa é certa, o PMDB - que nunca ganhou, mas nunca perdeu - continuará firme e forte no governo, na situação. O velho MDB, quem diria, virou a exata fotografia do que é a situação, independente da situação. Foi aliado de FHC, de Lula, e será de novo com direito a vice-presidência e tudo, caso a Dilma ganhe. Caso o Serra ganhe, certamente também se aliarão a ele, afinal de contas o PMDB elegeu a maioria no congresso, e não se preside sem o congresso, enfim, nada vai mudar.

Contudo, entretanto, porém e todavia, duas notícias me deixaram muito feliz nesta eleição:

01 - Fernando Elias não se elegeu.

02 - Gervásio Silva também não se elegeu.

Isso é uma vitória inominável para que caminhemos com um mínimo de esperança rumo a uma política que seja pautada na seriedade, na ética, na honestidade, e não no coronelismo regional, nos R$50,00 para gasolina no dia da eleição, na ajudinha para colocar o piso na casa em construção.

O cenário ainda é nebuloso, mas as derrotas destes dois me dão um gostinho muito doce de vingança. Vingança misturada com esperança. Quem sabe não é o começo da extinção desta espécie tão repugnante de politiqueiros?

O mundo seria um lugar melhor, sem políticos como eles.